CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

Estudo da Parasha da Semana – Cristãos estudando as fontes judaicas

Shemini – Lv 9,1 – 11,47

 

cegonha 1

Eu não acredito que os pais ainda contem isso aos seus filhos, mas eles costumavam fazer isso, quando eu era uma criança. Quando as crianças perguntavam sobre de onde os bebês vinham, era-lhes contado que a cegonha os tinha trazido.

A cegonha é uma ave migratória e que é muito familiar aos povos que vivem no centro da Europa. A cegonha deveria, repentinamente, quase misteriosamente aparecer na primavera após um longo período ausente durante o frio inverno. A cegonha fazia um ninho no telhado da casa, próxima quase sempre da chaminé da casa.

Já que toda criança tinha testemunhado a ausência e então o último retorno desta branca e longa ave com bico longo, era natural que os seus pais evitassem contar às crianças sobre os “fatos da vida” o máximo que eles pudessem adiar, atribuindo então o aparecimento dos bebês recém-chegados com a cegonha.

De forma interessante, a cegonha faz uma aparição na Parashat Shemini. A Bíblia, contudo, não reverencia o mito comum de que a cegonha era a responsável por essa entrega, e nem mesmo a produção, dos novos bebês.

Ao contrário, a seguinte parasha, Tazria, abre seus versículos justamente numa explícita narração da biologia na concepção da criança. Mas a Bíblia enumera a cegonha como um dos numerosos passos “impuros”; isto é, como uma das espécies de pássaros que um judeu é proibido de comer.

O termo hebraico para cegonha é hasida, sobre a qual Rashi faz um fascinante comentário. Ele começa identificando a hasida como uma “longa ave branca” e aplica o francês antigo termo tzikonia para ela. Uma rápida consulta num livro antigo de criança sobre zoologia me informou que a cegonha branca da Europa, a qual repousa com seu ninho em telhados e árvores é um símbolo do nascimento de crianças, e tecnicamente é classificada em latim como ciconia ciconia.

Rashi era particularmente familiarizado com esse pássaro. Ele descreve então sugerindo uma razão do porquê a ciconia ciconia, ou cegonha, é chamada hasida em hebraico. Depois de tudo, o termo hebraico significa “a amavelmente espécie”, aquela que faz atos amáveis (hesed); A razão agora oferecida no Talmud é que a cegonha “é amável para os amigos dela”; ou seja, generosa e protetora dos outros membros da sua própria espécie.

Estudantes avançados de parasha anos atrás começaram a querer saber por que um pássaro que era tão amável e apaixonado podia ser classificado entre as aves impuras. Depois de tudo, eles também são comumente considerados como animais proibidos de serem comidos e representantes de alguns traços indesejáveis de caráter. E aqui está um pássaro que merecia ser chamado hasida, um piedoso pássaro. Por que devia essa ave ser considerada impura?

Um dedicado estudante sugeriu que o problema com a hasida é que, embora seja uma ave amável, ela é amável somente com os amigos dela. Ela mostra compaixão somente para os outros membros da sua própria espécie. Para aqueles que não eram amigos da ave, mas pertencentes a uma diferente espécie, ela é indiferente e até mesmo cruel. Ser amável numa forma discriminatória é um traço negativo de caráter. Portanto, a cegonha é proibida.

Que poderosa e importante lição para cada um de nós! De tempo em tempo, nós ouvimos sobre desastres naturais, furacões, e tsunamis que ocorrem no mundo, sempre em distantes e diferentes países, para pessoas que são etnicamente e culturalmente muito diferentes do que nós. Porém, é sempre correto que demos atenção também à outras pessoas diferentes de nós, que se defrontam com horríveis, trágicos desastres. Não podemos nos preocupar somente conosco mesmos.

Mas quem de nós pode negar de ter tido ao menos uma passageira tentação de considerar que esses sofrimentos humanos estão tão longe de nós e que essas pessoas não têm relação real conosco! É sempre natural que a nossa resposta seja, “a Caridade começa em casa”, e que devemos nos voltar para as necessidades de nossos próprios amigos e deletar os gritos e lágrimas daqueles que são uma “espécie alienígena”.

A mensagem de Rashi deixa isso claro. Essa reação é impura. É totalmente errado ignorar o sofrimento humano só porque são diferentes e distantes de nós. A hasida é simpática e caridosa, mas somente para com a sua espécie. Não nos é permitido imitar a hasida.

Logo após a hasida ter sido nomeada nesta parasha (Lv 11,19), nós encontramos mencionado outro pássaro, a anafa. Rashi descreve a anafa como uma grande ave mal-humorada, um pássaro zangado, e arriscava um palpite que era a garça, justamente ela, com a qual ele mais se familiarizava, morando no norte da Europa central.

Se a cegonha simboliza o mal da generosidade discriminatória, a garça simboliza os males da raiva. A raiva é julgada negativamente pela tradição judaica. Os sábios de Israel nos contam que é pela maneira com a qual uma pessoa controla a sua raiva que o seu caráter pode ser avaliado. O Talmud nos conta que uma pessoa que se torna furiosa é suscetível de cometer graves erros, assim até mesmo o mais sábio dos homens pode cometer erros se ele permite a si mesmo se tornar enraivecido, nervoso.

Os sábios de Israel oferecem um exemplo de um sábio homem que se tornou refém da raiva e então errou. Esse sábio homem era ninguém menos do que Moisés, e o incidente está descrito nessa verdadeira porção da Torah, Shemini. “E Moisés inquiriu diligentemente a respeito do bode oferecido em sacrifício pelo pecado, e eis que tinha sido queimado! Irritou-se contra Eleazar e Itamar, os filhos sobreviventes de Aarão (Lv 10,16). Nos imediatos seguintes versículos, se tornou claro, como Aarão, o irmão de Moisés, apontou como ele tinha sido apressado no julgamento e que estava errado. Para seu crédito, Moisés não tardou logo em admitir seu erro.

Malbim, um homem brilhante e sempre muito criativo sábio comentador do século XIX, sugere em relação a esses versículos que existe uma recíproca relação entre a raiva e o erro. Sim, quando alguém está muito irado, seu julgamento é embaçado e fica mais propenso a errar, mas também é verdade, ele argumenta, que quando alguém está cego diante de um erro, ele está propenso também à raiva. Frequentemente, ver os fatos com clareza impede-se a resposta da raiva.

Uma vez mais, vimos a grande sabedoria que podemos ter acesso por meramente “vasculhar a superfície” do texto bíblico. Na superfície, nossa parasha nos oferece nomes de duas espécies de aves, que são ritualmente excluídas do menu judaico. Mas abaixo da superfície, esses dois pássaros, a cegonha e a garça, abriram dois grandes capítulos no livro tão extenso da ética judaica. Da cegonha, nós aprendemos o quanto é importante que nossa caridade seja inclusiva e estendida até mesmo às populações muito distantes, geograficamente, etnicamente, e religiosamente do povo judeu.

E da garça, podemos aprender sobre os perigos da raiva e sobre a dinâmica relacionada entre nossas forças intelectuais e nossas paixões emocionais. Algumas vezes, as faltas intelectuais nos levam a emoções pecaminosas. Com maior frequência, descontroladas emoções comprometem a nossa inteligência por caminhos que podem ser desastrosos.

As duas lições desses dois pássaros: ser sensível às necessidades de todos os seres humanos, mesmo que eles pareçam ou não conosco, e controlar a sua raiva, para que você não caia nas armadilhas dos erros e faltas.