CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS - Estudo da Parasha da Semana – Cristãos estudando as fontes judaicas
Nm 8,1 – 12,16 – BEHAALOTECHA
Rabbi Jonathan Sacks
https://rabbisacks.org/from-pain-to-humility-behaalotcha-5775/
Tradução: P. Fernando Gross

Parasha behaalotecha

Da Dor para a Humildade

David Brooks, em seu novo best-seller, The Road to Character (Allen Lane, 2015) faz uma distinção nítida entre o que ele chama de virtudes do currículo - as realizações e habilidades que trazem sucesso - e as virtudes do elogio, aquelas que são faladas em funerais: as virtudes e os pontos fortes que fazem de você o tipo de pessoa que você é quando não está usando máscaras ou desempenhando papéis, a pessoa interior que seus amigos e familiares reconhecem como o verdadeiro você.

Brooks relaciona essa distinção com aquela feita pelo Rabino Joseph Soloveitchik em seu famoso ensaio, The Lonely Man of Faith (Doubleday, 1992). Lá ele fala de Adam I - a pessoa humana como criador, construtor, mestre da natureza impondo sua vontade ao mundo - e Adam II, a personalidade da aliança, vivendo em obediência a uma verdade transcendente, guiado por um senso de dever e direito e vontade de servir.

Adam I busca o sucesso. Adam II se esforça por caridade, amor e redenção. Adam I vive pela lógica da economia: a busca do interesse próprio e da utilidade máxima. Adam II vive de acordo com uma lógica de moralidade muito diferente, em que dar importa mais do que receber, e conquistar o desejo é mais importante do que satisfazê-lo. No universo moral, o sucesso, quando leva ao orgulho, torna-se fracasso. O fracasso, quando leva à humildade, pode ser o sucesso.

Naquele ensaio, publicado pela primeira vez em 1965, o Rabino Soloveitchik se perguntou se havia um lugar para Adam II na América de seus dias, tão decidido era celebrar os poderes humanos e o avanço econômico. Cinquenta anos depois, Brooks ecoa essa dúvida. “Vivemos”, diz ele, “em uma sociedade que nos incentiva a pensar sobre como ter uma grande carreira, mas deixa muitos de nós inarticulados sobre como cultivar a vida interior”.

Esse é um tema central da Parashat Behaalotecha. Até agora vimos o Moisés exterior, operador de milagres, porta-voz da palavra divina, sem medo de enfrentar o Faraó por um lado, seu próprio povo por outro, o homem que quebrou as tábuas gravadas pelo próprio Deus e que O desafiou a perdoar Seu povo, “se não, apague-me do livro que escreveste” (Êxodo 32,32). Este é o Moisés público, uma figura de força heróica. Na terminologia de Soloveitchik, é Moisés I.

Em Behaalotecha, vemos Moisés II, o solitário homem de fé. É uma imagem muito diferente. Na primeira cena, nós o vemos desmoronar. As pessoas estão reclamando de novo da comida. Eles têm maná, mas não têm carne. Eles se entregam a uma falsa nostalgia: “Como nos lembramos dos peixes que comíamos de graça no Egito! E os pepinos, melões, alho-poró, cebola e alho! ” (Nm 11, 5). Este é um ato de ingratidão demais para Moisés, que dá voz ao profundo desespero. “Por que você trouxe todos esses problemas para o seu servo? Por que não achei favor em seus olhos, pois Você está colocando o fardo de todo este povo sobre mim! Eu concebi este povo ou o dei à luz, que Tu me dizes para carregá-los no meu colo como uma enfermeira carrega um bebê? Não posso carregar esta nação inteira! O fardo é muito pesado para mim! Se é assim que você vai me tratar, por favor, me mate agora, se eu achei graça em seus olhos, porque não suporto ver toda essa miséria! (Nm 11,11-15). 

Então vem a grande transformação. Deus diz a ele para levar setenta anciãos que carregarão o fardo com ele. Deus pega o espírito que está em Moisés e o estende aos anciãos. Dois deles, Eldad e Medad, entre os seis escolhidos de cada tribo, mas deixados de fora da votação final, começam a profetizar dentro do acampamento. Eles também receberam o espírito de Moisés. Josué teme que isso possa levar a um desafio à liderança de Moisés e pede a Moisés para detê-los.  Moisés responde com extrema generosidade: “Você está com ciúmes em meu nome. Quem dera todo o povo de Deus fosse profeta e que Ele descansasse o seu espírito em cada um deles” (Nm 11,29). O mero fato de que Moisés agora sabia que não estava sozinho, vendo setenta anciãos compartilhando seu espírito, o cura de sua depressão, e ele agora exala uma confiança gentil e generosa que é comovente e inesperada.

No terceiro ato, finalmente vemos para onde esse drama está tendendo. Agora o próprio irmão e irmã de Moisés, Aaron e Miriam, começam a menosprezá-lo. A causa da reclamação (a “mulher etíope” com a qual ele casou) não é clara e há muitas interpretações. A questão, porém, é que para Moisés, este é o momento "Até tu, Brutus?". Ele foi traído, ou pelo menos caluniado, por pessoas próximas a ele. No entanto, Moisés não foi afetado. É aqui que a Torah faz sua grande declaração: “Ora, o homem Moisés era muito humilde, mais do que qualquer outro homem na face da terra” (Nm 12,3).

Este é um momento novo na história. A ideia de que a maior virtude de um líder é a humildade deve ter parecido absurda, quase contraditória, no mundo antigo. Os líderes eram orgulhosos, magníficos, distinguidos por suas roupas, aparência e maneiras régias. Eles construíram templos em sua própria homenagem. Eles tinham inscrições triunfantes gravadas para a posteridade. Seu papel não era servir, mas ser servido. Esperava-se que todos os outros fossem humildes, não eles. Humildade e majestade não podiam coexistir.

No judaísmo, toda essa configuração foi derrubada. Os líderes deviam servir, não ser servidos. O maior elogio de Moisés foi ser chamado de eved Hashem, o servo de Deus. Apenas uma outra pessoa, Josué, seu sucessor, recebe esse título na Bíblia. O simbolismo arquitetônico dos dois grandes impérios do mundo antigo, o zigurate mesopotâmico (a “torre de Babel”) e as pirâmides do Egito, representava visualmente uma sociedade hierárquica, larga na base e estreita no topo. O símbolo judaico, a menorá, era o oposto, largo no topo, estreito na base, como se quisesse dizer que no judaísmo o líder serve ao povo, e não vice-versa. A primeira resposta de Moisés ao chamado de Deus na sarça ardente foi de humildade: "Quem sou eu para liderar?" (Ex 3,11). Foi precisamente essa humildade que o qualificou para liderar.

Em Behaalotecha, rastreamos o processo psicológico pelo qual Moisés adquire um nível ainda mais profundo de humildade. Sob o estresse da recalcitrância contínua de Israel, Moisés se volta para dentro. Ouça novamente o que ele diz: “Por que trouxeste todo este problema ao teu servo? … Eu concebi todas essas pessoas? Eu dei a luz a eles? … Onde posso conseguir carne para todas essas pessoas? (…) Eu não posso carregar todas essas pessoas sozinho; o fardo é muito pesado para mim. ” As palavras-chave aqui são “eu”, “eu” e “mim mesmo”. Moisés caiu na primeira pessoa do singular. Ele vê o comportamento dos israelitas como um desafio para si mesmo, não para Deus. Deus tem que lembrá-lo: “O braço do Senhor é muito curto”? Não se trata de Moisés, é sobre o quê e Quem Moisés representa.

Moisés estivera, por muito tempo, sozinho. Não que ele precisasse da ajuda de outras pessoas para fornecer comida às pessoas. Isso era algo que Deus faria sem a necessidade de qualquer intervenção humana. Era que ele precisava da companhia de outras pessoas para acabar com seu isolamento quase insuportável. Como já observei em outro lugar, a Torá contém apenas duas vezes a frase, lo tov, "não é bom", uma vez no início da história humana, quando Deus diz que "Não é bom para o homem estar só" (Gn 2,18), uma segunda vez quando Jetro vê Moisés liderando sozinho e diz: “O que você está fazendo não é bom” (Ex 18,17). Não podemos viver sozinhos. Não podemos liderar sozinhos.

Assim que Moisés viu os setenta anciãos compartilharem seu espírito, sua depressão desapareceu. Ele poderia dizer a Josué: "Você está com ciúmes por mim?" E ele não se incomoda com a reclamação de seu próprio irmão e irmã, orando a Deus em nome de Miriam quando ela for punida com lepra. Ele havia recuperado sua humildade.

Agora entendemos o que é humildade. Não é auto-humilhação. C. S. Lewis expressou da melhor maneira: humildade, disse ele, é não pensar menos de si mesmo. É pensar menos em si mesmo. A verdadeira humildade significa silenciar o “eu”. Para pessoas genuinamente humildes, é Deus, e outras pessoas e princípios que importam, não eu. Como foi dito uma vez sobre um grande líder religioso: "Ele era um homem que levava Deus tão a sério que nem precisava se levar a sério".
“Rabino Jochanan disse: Onde quer que você encontre a grandeza do Santo, bendito seja Ele, aí você encontra a Sua humildade.” (Megillah 31a). Grandeza é humildade, para Deus e para aqueles que procuram andar nos Seus caminhos. É também a maior fonte de força, pois, se não pensarmos no “eu”, não podemos ser prejudicados por aqueles que nos criticam ou nos rebaixam. Eles estão atirando em um alvo que não existe mais.

O que Behaalotecha está nos dizendo por meio dessas três cenas da vida de Moisés é que às vezes alcançamos a humildade apenas depois de uma grande crise psicológica. Somente depois que Moisés sofreu um colapso e orou para morrer é que ouvimos as palavras: “O homem Moisés era muito humilde, mais do que qualquer pessoa na terra”. O sofrimento rompe a carapaça do eu, fazendo-nos perceber que o que importa não é a auto-estima, mas sim o papel que desempenhamos em um esquema totalmente maior do que somos. Saibamos diferenciar as coisas (Lehavdil), Brooks nos lembra que Abraham Lincoln, que sofria de depressão, emergiu da crise da guerra civil com a sensação de que “a Providência havia assumido o controle de sua vida, que ele era um pequeno instrumento em uma tarefa transcendente” (Ibid, 95).

A resposta certa à dor existencial, diz ele, não é prazer, mas santidade, com o que ele quer dizer, "ver a dor como parte de uma narrativa moral e tentar redimir algo ruim, transformando-o em algo sagrado, algum ato de serviço sacrificial que se colocará em fraternidade com a comunidade mais ampla e com exigências morais eternas”. Isso, para mim, foi resumido pelos pais dos três adolescentes israelenses mortos no verão passado, que responderam à sua perda criando uma série de prêmios para aqueles que mais fizeram para aumentar a unidade do povo judeu - voltando sua dor para fora, e usá-lo para ajudar a curar outras feridas dentro da nação.

Crise, fracasso, perda ou dor podem nos mover de Adam I para Adam II, do direcionamento de si mesmo para o outro, da maestria para o serviço, e da vulnerabilidade do “eu” para a humildade que “lembra você que você não é o centro do universo ”, mas sim“ você serve a uma ordem maior ” ( Brooks, ibid., 263).
Aqueles que têm humildade estão abertos a coisas maiores do que eles, enquanto aqueles que não a têm, não. É por isso que aqueles que não tem humildade, fazem você se sentir pequeno, enquanto aqueles que a têm fazem você se sentir maior. Sua humildade inspira grandeza nos outros.

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