Fernando Gross – 03/2018 Centro Cristão de Estudos Judaicos

"Ora, os caminhos do Senhor são muitos, embora Ele próprio seja o Caminho. Pois, Ele chama-se a si mesmo caminho, e mostra a razão porque fala assim: Ninguém vai ao Pai senão por mim (Jo 14,6). Devemos, portanto, examinar e avaliar muitos caminhos, para encontrarmos, por entre os ensinamentos de muitos, o único caminho certo, o único que nos conduz à vida eterna. Há caminhos na Lei, caminhos nos profetas, caminhos nos Evangelhos e nos apóstolos, caminhos nas diversas obras dos mestres. Felizes os que andam por eles, movidos pelo temor do Senhor". (Dos tratados sobre os Salmos, de Santo Hilário, bispo – Os 127, 1-3; CSEL 24, 628-630 – Século IV).

"Mas Abraão lhe disse: Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos". (Lc 16,31)

Aprendendo com as tradições paternas (Gl 1,14)

A Importância das fontes judaicas para um cristão – Pierre Lenhardt[1]

A importância vital das fontes judaicas
A Torah Una do Deus Uno
O vai e vem do cristianismo ao judaísmo e do judaísmo ao cristianismo

"As fontes judaicas que eu frequento intensamente já há numerosos anos, tiveram uma importância vital para o cristão que eu sou" (Irmão
Pierre Lenhardt – 90 anos NDS).
Gostaria muito que essa importância fosse reconhecida por todos os cristãos e que os cristãos sempre em maior número se engajassem no estudo das fontes judaicas. Vou me apoiar sobre a experiência adquirida no contato de Israel e de sua Tradição religiosa, já que não tenho uma notoriedade doutoral... Minhas posições pessoais são aquelas de um católico, não me opondo de modo algum às outras confissões cristãs. Mas quero ser bem claro, o quanto possível for sobre minha identidade, para tratar sobre a importância que tiveram para mim os estudos judaicos.
Como católico, começo por dizer que as fontes judaicas que considero importantes são as mesmas que servem de referência a todos os judeus tomando emprestado o evangelho de Marcos 7,13, com uma fórmula oportuna. Espero de verdade de que os judeus e o judaísmo de que fala a Igreja Católica, quando evoca o patrimônio comum ao judaísmo e cristianismo, quando ela fala da identidade judaica e da identidade cristã, quando ela afirma: a Antiga Aliança nunca foi revogada, anulada, sejam aqueles judeus e o judaísmo que foram os da continuidade farisaica. Sem dúvida, quando a Igreja católica firmou em dezembro de 1993 um acordo fundamental entre o Estado de Israel e a Santa Sé, reconheceu que esse Estado representa o povo judeu e por consequência os outros judeus que identificam com essa continuidade dos fariseus. Israel sempre será a referência comum a todos os judeus: judeus "religiosos", ortodoxos, conservadores, "reconstrucionistas", judeus liberais "não religiosos", secularizados, agnósticos, ateus, antirreligiosos. Nem os escritos de Spinosa, nem os de Marx ou os de Freud, ou outros que possam ser apreciados a partir de sua língua, de sua cultura, ou de seus gostos literários, não são para mim fontes judaicas.
As fontes judaicas são para mim, antes de tudo, aquelas que os mestres fariseus e seus sucessores reconheceram como Palavra de Deus, como Torah. Eu me apoio sobre aquilo que o profeta Isaías  escutou (Is 2,3): "de Sião sairá a Lei, e de Jerusalém a Palavra do Senhor". Sem dúvida, segundo o profeta, será no fim dos tempos que as nações dirão isso. Mas para mim, cristão, esse final dos tempos já começou com a ressurreição de Jesus Cristo. Desse modo eu posso, portanto, dizer com ele, e com meus irmãos cristãos da gentilidade, e com os judeus, que se tornaram cristãos ou não, que de Sião veio a Torah e de Jerusalém a Palavra do Senhor. Pelo meu batismo, faço parte de uma Igreja que diz com Jesus Cristo, em referência ao profeta Isaías que citamos antes: "Nós, nós adoramos aquilo que nós conhecemos, pois a salvação vem dos judeus" (Jo 4,22). Afirmando isso, não estou introduzindo uma separação entre a Palavra do Senhor, a Torah que vem de Sião, isto é, os judeus segundo Is 51,16 e Jesus Cristo que, para mim, em Pessoa é a Torah. Eu não separo mais a salvação que vem dos judeus da salvação que, para mim, vem de Jesus Cristo, o Messias, rebento de Davi.


A IMPORTÂNCIA VITAL DAS FONTES JUDAICAS

Portanto, as fontes judaicas são para mim a Torah Oral e Escrita, ou ainda dizendo a Torah Uma, oral e escrita, a Torah de Moisés que ofereceu o Senhor o Deus de Israel (Esdras 7,6).
"Frequentar as fontes judaicas, me ocupar da Torah que me ensinam os judeus, é ela que é a minha vida (Dt 30,20). Eu recebi aquilo que viveu e ensinou Rabbi Akiba antes de morrer torturado pelos romanos no ano 135 d. C.[2] ". Rabi Dov Baer de Loubavitch [3], que dizia que Deus Ele mesmo é que é designado pelo pronome HU (Ele) em Dt 30,19-20: "Escolhe, pois, a vida para que vivas, tu e teus descendentes, amando ao Senhor teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a Ele – pois ELE é tua vida e prolonga os teus dias –, a fim de que habites na terra que o SENHOR jurou dar a teus pais, Abraão, Isaac e Jacó".
Essa vida que é a Torah, não dispensou Rabbi Akiba, nem Jesus antes dele, de conhecer o extremo do sofrimento humano, de provar a absoluto abandono, de sofrer a tortura e a morte. Todo o positivo que o cristão recebe dos judeus, se ele quiser, não irá dispensá-lo de viver com o horror do sofrimento dos inocentes, como também diante do horror do sofrimento judeu, específico e indizível, que não pode ter nenhum outro nome possível que a Shoah (a catástrofe). A escuta cristã do sofrimento universal, do sofrimento dos inocentes, do sofrimento judaico, faz parte da escuta da Torah e deve estar na base de uma cristologia renovada a partir da Shoah.[4]
E também não podemos ignorar a alegria da Torah (Simhah shel Torah), a alegria que experimentam os judeus no estudoensinamento (talmud) da Torah, na observância dos mandamentos[5].
Essa é a alegria de Israel. Sua especificidade é inalienável. Semeada na luz para os justos, e para aqueles que dirigem seus corações para o arrependimento ela é indestrutível e não pode deixar à morte a última palavra[6].
A alegria da Torah é a alegria específica de Israel. Ela é possível a um gentio, e isso é um fato, de experimentá-la no contato com os judeus. Tal experiência, para um cristão, é inseparável da alegria recebida pelo Batismo no Espírito Santo (At 13,48-52), alegria de Jesus Cristo, alegria perfeita por Aquele que nele mora (Eu vos disse isso, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa). Essa alegria é aquela que oferece a Torah perfeita (Torah temimah Sl 19,8: "A Lei do Senhor é perfeita, conforto para a alma"), quando se percebe a coerência que provém de sua Unidade [7].
Essa Torah Una é, porém, diversa. Nela se encontram, segundo a Tradição de Israel, a Tradição Oral do Judaísmo (Mishná), a Escritura Sagrada (Miqra), o Talmud (Midrash), a Halakah, a Haggadah [8]. Como cristão, segundo a Tradição da Igreja, eu situo nessa maravilhosa Unidade da Palavra de Deus, a coleção que foi feita, hoje inteiramente escrita, dos testemunhos orais e escritos sobre Jesus Cristo. Ao Novo Testamento que se tornou Escritura, eu acrescento tudo aquilo que a Tradição da Igreja me fez conhecer sobre Jesus Cristo. Eu sei e creio que Ele é a Palavra de Deus feita carne, o Verbo condensado que recapitula e unifica todas as palavras da Torah do Deus Uno[9]. No meu contato com as fontes judaicas, eu não posso partir a não ser Dele e não posso deixar de chegar a não ser Nele.


O vai e vem do Cristianismo ao Judaísmo e do Judaísmo ao Cristianismo.

Eu parto necessariamente do cristianismo. Estudar as fontes judaicas silenciando minha fé cristã seria mais do que uma estupidez.
Seria um erro e um erro mais grave ainda se acreditasse estudar o judaísmo de maneira científica. Na realidade, nenhuma pesquisa científica se pode passar por uma hipótese. Minha hipótese é que a fé cristã é coerente com a Palavra de Deus que me vêm pelas fontes judaicas como elas me vêm de fontes especificamente cristãs.
Para explorar as riquezas de minha fé cristã, eu parto dessa fé e claramente a partir das palavras escritas no Novo Testamento, que eu leio na fé. Eu sei que minha fé e o Novo Testamento estão unidos, em Jesus Cristo, no Deus Uno, com o judaísmo e com as suas fontes. Eu procuro, portanto nessas fontes aquilo que me faz melhor conhecer Deus e a mim mesmo. Esse ponto de partida, que vai do cristianismo ao judaísmo, pode ser chamado de "analítica".

Mas existe outra referência, que vai do judaísmo ao cristianismo, que eu chamaria de "sintética", esta referência, inseparável da primeira, se faz através do encontro com os judeus e na escuta do judaísmo tais como eles se definem e se expressam eles mesmos. A Igreja convida a tal escuta, que deve respeitar os judeus tais como eles são e tais como eles desejam permanecer[10]. Nesse sentido não posso fazer abstração da minha fé cristã, mas devo evitar limitar minha escuta àquilo que no judaísmo já está em ressonância com minha fé. O judaísmo não se reduz àquilo que minha fé cristã, tal como ele é, me prepara a receber dele[11].

Sendo diferente e maior do que a minha expectativa cristã, o  Judaísmo, escutado naquilo que ele diz sobre si mesmo, sobre Deus, sobre a humanidade e sobre o mundo, ilumina minha fé sobre aspectos ignorados e sobre aspectos imprevisíveis do patrimônio comum ao Judaísmo e ao Cristianismo, ainda  nsuficientemente conhecidos.

Nesse sentido eu escuto os judeus, eu estudo com eles e na sua escola. Eu acredito perceber alguma coisa do que eles chamam sobre a alegria da Torah... Eu tento compreender o que é a Torah para eles e como eles vivem. Eu participo com eles das orações quando eles me 10 Confira as recomendações feitas pela Igreja Católica nas Orientações e Sugestões da Comissão da Santa Sé para as relações religiosas com o judaísmo (1° Dezembro de 1974) e repetidas nas Notas da mesma Comissão em 24 de junho de 1985, "Considerações Preliminares", n°s 03 e 04. 11 Pierre Lenhardt em seu mestrado de Teologia criticou H.Urs Von Balthasar pelo uso que fez da noção "estrutura cristológica de Israel" para tratar sobre alguns aspectos do judaísmo convidam. Eu rezo com eles, com as palavras das suas orações, naquilo que ela diz, e isso faz ressoar em mim na minha fé cristã. Não posso deixar de experimentar em contato com a alegria pascal judaica de Hallelu-Yah (Louvai Àquele cujo Nome é Yah! – Salmo 113,1).

"Louvai, servidores do Senhor, e não mais escravos do faraó!" [12] a alegria pascal cristã da ressurreição de Jesus Cristo. É assim que as fontes judaicas iluminam no mais profundo a minha fé cristã. Escutar os judeus tais como eles se definem me faz somente descobrir aquilo que está latente, talvez escondido e por vezes mesmo oculto, na minha vida cristã.

Na referência "sintética" não é nem necessário e nem automático esperar uma ressonância cristã. Isso me obriga a estudar as fontes judaicas tais como elas são. Isso me obriga a aceitar que os judeus, que vivem dessas fontes, e que são os intérpretes legítimos e competentes, não acreditem em Jesus como o Cristo, como o Messias.


Bibliografia:

Gênesis Bereshit – Comentários
Lieber, David. Etz Hayim. Torah and Commentary. New York: The Rabbinical Assembly, 2001.

Lustiger, Arnold. Chumash with commentary based on Rabbi Joseph B. Soloveitchik. New York: Outpress, 2013.

Munk, Elie Rabbin. La Voix de La Torah – La Genèse. Paris:Fondation Samuel et Odette Levy, 1978.

Rashi. Chumash: Bereshit com Rashi Traduzido. São Paulo: I.U.Trejger, 1993.

Literatura Rabínica, Talmúdica, Sábios de Israel, Pensadores judeus

Ginzberg, Louis. Patrimoines Judaïsme – Les Légendes des Juifs. Tome I. La création du monde, Adam les dix générations, Noé.Tome II. Abraham, Jacob.Paris: Cerf, 1997

Heschel, Abraham J. Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975.

Maruani, Bernard e Cohen, Albert (tradutores do original hebraico). Midrach Rabba Tome I – Genèse Rabba. Collection "Les dix Paroles". Paris: Verdier, 1987.

Neher, André. Clefs pour le Judaïsme. Paris: Seghers, 1977.

Smilévtich, Eric (tradutor do texto integral hebraico). Leçons des Pères du Monde (Pirket Avot et Avot de Rabbi Nathan).Paris:Verdier, 1983.

Wiesel, Elie. Homens sábios e suas histórias. Retratos de mestres da Bíblia, do Talmude e do hassidismo. São Paulo:Companhia das Letras, 2006.

Wiggoder, Geoffrey. Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme.Paris: Cerf, 2008.