A Igreja e as Cruzadas

36 – A Igreja e as Cruzadas

"A pior catástrofe que podia acontecer aos judeus da Europa e do Médio Oriente foram as Cruzadas"[1]. Na véspera da primeira Cruzada em 1096 o número de judeus no império Germânico devia ser aproximadamente 20 000. Quando o poder real se esfacelou, a autoridade passou para senhores feudais. A sorte da comunidade judaica dependia da boa vontade do dono do castelo. Com o declínio da monarquia Carolíngia, a Igreja impôs a sua voz. O antissemitismo popular substituto da oposição que havia no plano teológico irá provocar uma mancha negra nesse período e nos séculos que viriam. A primeira Cruzada vitimou não somente os judeus da França, mas igualmente as comunidades do Vale do Reno. Os textos desses massacres ainda foram conservados na liturgia Ashkenazi e trechos dela ainda são lidos nos dias de jejum do dia 09 do mês de Av, quando se relembra a destruição dos dois Templos.

É preciso lembrar que numerosos bispos se opuseram firmemente a esses desvarios populares. A bula papal Sicut Judeis do século XII reprime severamente essa odiosa conduta e se manteve ao longo da Idade Média. Mas era suficiente que apenas um senhor feudal ou um sacerdote fanático para  mexer em ninho de vespa. E a massa camponesa ignorante e com inveja do sucesso, sempre desconfiada dos judeus, não demoraria em querer vingar o Cristo e iniciar os massacres.

São Luís não ficará na memória judaica como um rei bom, santo e generoso. Influenciado pelo clero ele tomou uma série de medidas contra a comunidade judaica, queimando o Talmud em 1244 e a proibição do empréstimo com juros, um dos poucos ofícios que os judeus podiam ainda exercer.

Na Inglaterra, os séculos XI e XII foram marcados pelos mesmos sinais inquietantes e agressivos de antissemitismo. Em 1144 em Norwich foi anunciado pela primeira vez o crime de morte ritual, acusando os judeus de fabricar o pão ázimo da Festa da Páscoa  (Pessah) com o sangue de uma criança cristã (!!!?). Essa acusação se repetiu na França, em Blois precisamente, em 1171, o que provocou o massacre de toda a comunidade. Essa calúnia, como a outra da profanação da hóstia eucarística, sempre lançada contra os judeus regularmente em toda a Europa até mesmo os inícios do século XX, faziam os judeus não somente os inimigos do cristianismo, mas os inimigos da humanidade toda, como os capangas de Satã que em dia de Shabat (ou Sábado) pactuavam com o diabo.

Em seguida do Concílio de Latrão (1215), os judeus foram obrigados a trazer um sinal distintivo: uma roda na roupa na França, um tecido em forma das Tábuas da Lei na Inglaterra, ou um chapéu pontiagudo na Alemanha. Em 1275 e 1290, os judeus foram expulsos da Inglaterra. Na França, o mesmo decreto foi confirmado sob o reinado de Filipe, o Belo, em 1306.

Com o fim da Idade Média, a situação das comunidades judaicas era bem ruim. A tudo isso se acrescentava a miséria, as epidemias e a fome. Populações inteiras morriam e os judeus eram responsabilizados por isso. A especialização dos judeus no empréstimo com juros piorava ainda mais as diferenças com os cristãos.[2] Durante as Cruzadas de Midi, de Tourraine e de Berry chamadas "Pastorais" (1320-1321), os judeus permaneceram sendo os bodes expiatórios da vingança popular. Na Alsácia, entre 1336 e 1339, os camponeses chamados de "Judenschlager", "assassinos de judeus", fizeram reinar o terror. A Peste Negra de 1348-1349 não ajudou em nada a situação. Entre os séculos XIII e XV, os mesmos cenários se repetiram na sua trágica monotonia: expulsões, ameaças, massacres. Somente os judeus das comunidades do Sul da França (Comtat Venaissin, Avinhão), chamados de "os judeus do Papa", se beneficiaram de uma proteção e de um estatuto especiais.

Em 1516, o quarteirão judaico de Veneza foi cercado por muros para marcar bem a separação da população cristã. Foi o nascimento do Gueto ("fundição" em italiano, por causa da proximidade desse local do quarteirão judaico), mesmo que um espaço próprio separado de fato já existisse desde o século XIII. Em 1555, a encíclica Cum nimis absurdum do Papa Paulo IV institucionalizou essa prática.[3] Foi preciso esperar o final do século XVI para constatar a evolução de outra mentalidade em relação às pessoas judias.


[1] Bacon, Josephine. Atlas ilustrado da Civilização Judaica. Portugal: Dinalivro, 2003, p. 73.
[2] Os judeus acabaram tendo o monopólio das transações financeiras, se tornando os banqueiros da Europa. Mas isto se revelou uma espada de dois gumes. Cf. Bacon, Josephine. Op. cit, p. 73.
[3] No Islamismo o quarteirão judaico já existia também, e se chamava a Mellah ou a Hara.