45 – As três "realidades" metafísicas

o puro e impuroO monoteísmo ético, que implica a responsabilidade do ser humano perante a criação, promove uma visão dinâmica do mundo. Diante dos três estados da física: sólido, líquido e gasoso, o Hebreu que nos chamaremos de "monoteísmo pragmático" considera também três níveis metafísicos: o profano, o santo e o impuro.

O profano é chamado na literatura rabínica de hol (areia), e representa a criação, um estado neutro do real, mas gerado por leis naturais, impostas por Deus na sua origem. E se é profano expressão dessa vontade divina não existe possibilidade para um julgamento negativo das realidades terrestres, pois seria entendido como uma depreciação da obra de Deus. Os céus/ a terra, o corpo/ a alma, a vida intelectual/ a vida sexual não são binômios contraditórios e opostos, mas complementares e necessários, na pura lógica dinâmica do monoteísmo. O profano é divino[1]. O judaísmo jamais partirá dessa visão, mesmo que tendências extremistas apareçam inevitavelmente no curso dos séculos.

A "santidade" (kedoucha) significa "separação". A praticidade do Hebreu favorece que ele separe a santidade divina da santidade terrestre. Quando Isaías, por exemplo, lembra: "Santo, Santo, Santo o Eterno do cosmos" (Capítulo 6) isso significa que Deus é totalmente separado, totalmente Outro, totalmente transcendente. Proclamando que Deus é Santo, nenhuma informação nos é dada sobre Ele, somente que Ele permanece e sempre permanecerá inacessível. Matematicamente falando, o atributo de santidade é representado por um limite infinito.

Mas na vida humana, ao contrário, a santidade não é um estado estável, mas dinâmico, um esforço de elevação. Essa percepção dinâmica da santidade. O Talmud ensinará: "Escalamos em santidade, não descemos". A partir do momento que se considera "lugares santos" ou "tempos santos" como sacos que contém pérolas, estaremos muito perto de uma heresia panteísta. Nunca um Hebreu autêntico cometeria tal falta de espírito, a menos que esteja bem perto do sincretismo.

Desse modo quando se fala da santificação do dia do Shabat (Sábado), não se trata de que ele tenha uma textura espiritual particular, mas que a consciência libertada, "separada", das preocupações da produção econômica, pode melhor esclarecer o sentido de sua existência, e, portanto, melhor construir seu templo interior, seu ser. Assim como no episódio da Sarça Ardente (Livro do Êxodo capítulo 3) Deus exige que Moisés retire suas sandálias, e não é caso como se traduz geralmente, porque a terra é santa (a terra nunca é santa, ela é sempre profana), mas porque ela se tornou o lugar de uma experiência de elevação da consciência. O Templo não é santo em si mesmo (isso é o que acreditam os panteístas e que tanto condenavam incansavelmente os profetas). O Templo é o espaço no qual o encontro com a transcendência é possível.

O sacerdote ou Cohen não é ontologicamente mais santo do que um simples fiel de Israel ou do que um pagão das nações. O sacerdote é santificado, "separado" para uma função religiosa precisa[2]. Deus dirá no capítulo 19 do Livro do Levítico "Sejam santos, porque Santo Sou Eu o Eterno, vosso Deus"[3]. Diante do culto da natureza e dos instintos, o Eterno revela um código civil e religioso que abrange todos os setores da existência, como o respeito aos pais, a preservação das leis do Shabat, o zelo no cumprimento dos deveres religiosos, a condenação dos ídolos, sobre o roubo, a mentira, e o convite a amar seu próximo como a si mesmo. Todos esses atos de vigilância são considerados "sobrenaturais", pois exigem um esforço de vontade e uma generosidade gratuita em referência às palavras do Eterno Deus.

Saberá o Hebreu a conter seus instintos para que a vida social seja possível. Saberá ele "aproveitar" da vida, mas sabendo evitar todo excesso. Sem abuso de álcool ou de comida, sem sexualidade desenfreada, sem preguiça paralisante ou de espontaneidade irrefletida. É no caminho real do "meio", escreveu Maimônides, que o ser humano avança e se eleva na santidade.

A impureza (toumah) – da raiz timtoum – fechamento é o terceiro "estado" ligado a uma diminuição, ou melhor, uma supressão da vida, um confinamento. Se a santidade é uma dinâmica de ascensão, a impureza é um estado de rebaixamento. Fala-se de um objeto ou de uma pessoa que está "pura" ou "impura". A fonte da impureza, nomeada em seguida pelo Talmud "o grande pai da impureza" é a morte, que significa a interrupção da informação e da consciência de si, a paralisação da progressão moral. A pior das mortes para a consciência é a de estagnar, de não mais conhecer o movimento que consiste em receber a informação ou em escolher a vida.

Para o Hebreu essa noção de impureza não tem alguma conotação pejorativa e não se traduz por um desprezo. Nem é igualmente sinal de sujeira. A impureza da mulher, por exemplo, é simplesmente considerado como a perda do óvulo que, se tivesse sido fecundado, iria gerar um bebê. A abominação (toeva), de que fala, por exemplo, a Bíblia sobre a zoofilia (sexo com animais) significa, antes de todo julgamento das pessoas, a entrada de uma desordem na atividade vital da criação.

Para purificar um objeto ou uma pessoa, é necessário passar pela água (ablução das mãos, imersão num banho ritual). Na época do Templo, os sacerdotes praticavam ritos de purificação bem elaborados que não são mais praticados após a destruição do santuário. A água, símbolo de movimento, lugar da emergência das primeiras formas de vida animada (Gênesis 1,21) representa o contrário do fechamento.[4]

o puro e impuro2


[1] Cf. Haddad, Philippe. Pour expliquer le judaïsme a mes amis. Paris: Editions in Press, 2013. p. 102.

[2] Para que essa distinção do sacerdote não fosse entendida como uma superioridade natural, o Talmud ensina que uma criança inteligente nascida de um adultério precede um sumo sacerdote ignorante (Tratado Jurisprudência – Horayoth III).

[3] É importante recordar que o verbo para Israel está no futuro, mostrando que a santidade é um futuro.

[4] A imersão no banho ritual é muito importante e carregado de sentido. Debaixo da água,  a pessoa não pode respirar, ela está provisoriamente privada da vida. Saindo da água, os pulmões se enchem novamente de ar, como um bebê que sai do ventre. Esse ar relembra o sopro de Deus que pairava sobre a superfície das águas (Gn 1,2). Portanto, o valor do banho ritual não está tanto na sua imersão, mas também na saída dele para o ar.