99 – A Fé dos Rabinos do Talmud

A fe dos Rabinos do Talmud

Os rabinos do Talmud consideravam que não existe uma única Revelação de Deus, mas sim duas: a primeira feita a Noé para a humanidade e a segunda no Sinai para Israel.

Segundo o tratado – O Grande Tribunal (Sanhedrin) 56b, os descendentes de Noé receberam as leis também chamadas de Brit Noah (Pacto de Noé) e que foram ordenadas por Deus a Noé após  Dilúvio como regra pra toda a humanidade. Trata-se de um mínimo colocado diante da consciência humana para que os povos possam viver, sem inclinar-se para a violência. Essas leis formam como que a religião "católica", isto quer dizer, universal, de Israel.

1) A proibição da idolatria. O que não significa a adesão ao monoteísmo absoluto de Israel, mas que pede o reconhecimento de um princípio unificador acima da multiplicidade das divindades.

2) A proibição da blasfêmia. A proibição de falar mal contra sua própria memória religiosa seja ela qual for. Esse surpreendente princípio decorre do próprio monoteísmo que afirma que o politeísmo é uma deformação do monoteísmo da origem. Toda idolatria é, de certo modo, um serviço a Deus que se desviou da verdade.

3) A proibição de matar. O respeito para com a vida dos outros.

4) A proibição da união com seus parentes próximos. O respeito dos laços de filiação.

5) A proibição do roubo. O respeito para com os bens do outro.

6) A proibição de arrancar o membro de um animal vivo. O respeito para com a vida animal.

7) A obrigação de estabelecer tribunais. Com o objetivo de defender o direito e a liberdade de cada cidadão, e de fazer respeitar as outras seis leis.

Portanto, sem obrigar a conversão ao Judaísmo, o não-Judeu respeitoso dessas regras adquire uma dignidade que o torna tão justo quanto o Sumo Sacerdote saindo do Santo dos Santos, em dia de Kipour[1].

Com relação aos 613 preceitos, Rabbi Simlai ensinou: 613 preceitos foram dados a Moisés no Sinai. Sobre qual versículo apoiamos esse ensino, perguntou rav Ammouna? Sobre o versículo: "A Torah que Moisés nos ensinou é a herança da Casa de Jacó"' (Deuteronômio 33,4).

Esses 613 preceitos poderiam ser classificados em três partes. Primeiramente, podemos distinguir 248 mandamentos positivos e 365 mandamentos negativos. Esses números correspondem respectivamente ao número dos órgãos do corpo humano segundo a medicina do Talmud, o segundo número corresponde aos dias do ano solar. Um modo de afirmar que os preceitos interpelam tanto o ser físico no espaço, quanto o ser moral no tempo.

A análise da Bíblia permite igualmente classificar esse conjunto de preceitos em:

- Leis Sociais (Mishpatim) que regem as relações humanas numa cidade hebraica.

- Leis de Testemunho (Edouyoth), cerimoniais que atualizam os acontecimentos vividos pelos filhos de Israel, depois da saída do Egito, até a sua chegada às fronteiras da Terra Prometida.

- Leis Religiosas (Houkim) ou"decretos divinos" que não são justificados nem pela sociabilidade, nem pela história, mas significam a submissão do fiel à vontade transcendente de Deus. Entre esses "decretos", citemos as leis alimentares (kasherout) ou a proibição de usar roupas mescladas de lã e de linho.

Uma última classificação diferencia os mandamentos referentes a Deus (religiosos) e os outros mandamentos que fazem referência ao próximo (morais). A Torah sempre oferece regras gerais. Ela deixou aos Sábios o cuidado de estabelecer a jurisprudência. Graças às treze regras de interpretação (hermenêutica), e ao poder da discussão, o Judaísmo tinha as chaves que permitiam comentar os textos. Finalmente, foi o poder rabínico que manteve a coesão da comunidade durante o Exílio.

Através da Fé, do Estudo e dos Ritos, o Judaísmo procurou sempre levar a Revelação muito a sério. O Criador se manifestou no Sinai através de uma grandíssima Teofania, diante de homens, mulheres, crianças, de Hebreus e não Hebreus, para transmitir o Decálogo. Em seguida, comunicou toda a Torah a Moisés. Portanto, cada versículo, cada palavra, cada letra é uma expressão da vontade divina ali presente no pergaminho. Discutindo com fervor sobre a Lei, o estudante mergulha no oceano de sabedoria do Altíssimo. A partir daí, essas palavras não são mais transcendentes, elas são adquiridas pelo ser humano, porque retrabalhadas, remodeladas, humanizadas. Essas discussões, algumas sem conclusão (princípio de tekou) tinham por objetivo extrair a regra da conduta ideal, de encontrar os gestos, a postura, o instrumento que pudesse melhor traduzir a Fé; criteriosa mistura entre palavra divina e palavra humana. Todo o Judaísmo está aí: apropriar-se do que é para Deus, em nome de Deus, para fazer voltar a Deus, enriquecido do esforço da consciência.

Se após a destruição de Jerusalém, Israel não podia mais se aproximar do altar com um carneiro, ele podia oferecer o seu estudo. "Depois da destruição do Templo, o Altíssimo, não possuía neste mundo, nada mais do que os quatro côvados da Lei"[2]. De certo modo, cada estudo que contribuía para uma mitsvá é um sacrifício, o mais belo que possa existir, pois ele sacrifica o animal que dorme no ser humano e o transforma num movimento de amor. Para o judeu, não existe contradição alguma entre "fé" e "lei", pois a fé só pode se expressar na lei. A fé não precede o rito, a fé é o próprio rito. Os mestres do Talmud não eram filósofos ou teólogos. Como profetas eles se agarravam ao aspecto prático das coisas. "Não é a procura do sentido que é o essencial, mas a ação" diz o tratado dos "Pais", fazendo eco ao comprometimento dos filhos de Israel no Sinai: "nós faremos (antes) e (por causa disso) compreenderemos". O que os Doutores desejavam acima de tudo, era reforçar a fé nos fiéis a fim de que se tornassem bons servidores de Deus, totalmente desinteressados no aspecto da retribuição. Deus se revelou, Ele ofereceu a sua Palavra, Ele fez do ser humano seu sócio. Portanto, a grandíssima honra do ser humano consiste em atualizar essa "Presença", pela prática dos mandamentos. Como o exemplo de um enfermo que toma os seus remédios, independentemente de todo o conhecimento em química. A "teologia" do Talmud é simples e prática.

Mas o judaísmo não existe no vácuo, as ideias circulam e penetram os espíritos. Foi em Alexandria que ocorreu o encontro com o pensamento grego, encontro que iria ter consequências maiores e irreversíveis sobre o futuro do Judaísmo.


[1] Tratado – A Última Porta – Baba Batra 38a.
[2]Tratado – Bênçãos – Berachot 8a.