A IMPORTÂNCIA DAS FONTES JUDAICAS PARA UM CRISTÃO PARTE V FINAL

PIERRE LENHARDT, NDS[1]*

7 A Torá Oral e a Torá encarnada [254]
Entre muitas outras possibilidades, Israel se define como o povo dos servos do Senhor, e não mais escravos do Faraó,[355] ou ainda como o “servo” do qual o profeta Isaías fala[456] e a propósito do qual a Mishná transmite: “Rabi Hananiah ben Aqashia (início do segundo século de nossa era) disse: ‘O Santo, bendito seja Ele! quis fazer Israel merecer. É por isso que Ele multiplicou para eles Torá e mandamentos, como está dito’ (Is 42,21): “O Senhor, por causa de sua justiça, quis fazer engrandecer e resplandecer a Torá”.[557] A Torá é dada a Israel para que a faça engrandecer e resplandecer através do estudo-ensinamento (Talmud Torá) e através da ação (mandamentos). Este desenvolvimento e esta iluminação não são feitos pela Torá escrita, fixada e imutável, mas pela Torá oral confiada às pessoas e às comunidades vivas. É através do povo que a Torá se renova sem cessar. Rabi Eliezer e Rabi Yehoshua, os mestres mais conservadores, que garantiram a continuidade da Torá antes e depois da destruição do segundo Templo, não concebiam que pudesse haver um dia sem renovação (hiddush) na casa de estudo.[658] A Torá oral é vivida e transmitida na relação mestre e discípulo, na qual toda pessoa pode ser o mestre: o pai, a mãe, o menor em Israel como o maior.[759] Sem nenhuma dúvida, um grande mestre como Rabi Eliezer, ainda que pecador, é para os seus discípulos uma Torá viva.[860] O discípulo recebe como Torá não só o que o mestre ensina por suas palavras, mas também o que ele ensina por suas ações.[961] Contudo, nenhum mestre antigo jamais disse de si mesmo e jamais se disse de um mestre antigo, que ele era a Torá. Não obstante, nas diferentes correntes hassídicas, oriundas do Rabi Israel Baal Shem Tov (1700-1760), se vê o status do Tsadiq, do chefe da comunidade, se elevar, segundo as diferentes dinastias, a um grau que já faz falar da “encarnação viva da Torá” (living incarnation of the Torah) e que não deixa de inquietar alguns eruditos judeus.[1062] Um ponto extremo é atingido pelo Rav Nahman de Bratslav (1772-1811), neto de Baal Shem Tov, que dizia do “Justo (Tsadiq) da geração”, pensando em si mesmo: “Quando se fala da Torá oral ou quando se fala do ‘Justo da própria geração’, trata-se inteiramente de uma só e mesma coisa, pois o essencial da Torá oral depende do ‘Justo da geração’. E seguramente o Discípulo do Sábio é em si mesmo a Torá... (ha-tamid hakham hu be-atsmo ha-Torah)”.[1163] O Rav Nathan de Nemirov (1780-1845), discípulo de Rav Nahman, dizia de seu mestre: “Sua intenção (de Rav Nahman) é a de que recebêssemos as suas santas palavras na simplicidade, de tal modo que observássemos e a fizéssemos e que cumpríssemos todas as palavras de sua Torá com simplicidade e perfeição (ausência de divisão)”.[1264] Esta aplicação a Rav Nahman de fórmulas que visam Deus na oração litúrgica, na segunda bênção antes do Shemá Israel da manhã, vai muito longe. É possível que os hassidim de Bratslav fossem mais longe ainda no seu apego a Rav Nahman sem falar do exterior de suas comunidades.[1365] Eu evidentemente não posso tirar algum argumento destas realidades hassídicas para justificar a formulação que empreguei, isto é: Jesus Cristo, em sua Pessoa, é a Torá. Porém eu reconheço que ela me sugeriu através daquela de Rav Nahman: “O Discípulo do Sábio é em si mesmo a Torá”.

Eu gostaria de não justificar esta fórmula, mas sim de propô-la como preferida às outras. Poder-se-ia pensar na fórmula mais simples: Jesus Cristo é a Torá, mas ocorreria duas dificuldades: a primeira seria que nem a palavra Torá, nem a palavra “Palavra de Deus”, nem a palavra “Verbo de Deus”, que são equivalentes, aparecem nos Símbolos da fé; a segunda dificuldade seria que a palavra Torá é imprecisa.

Tratamos primeiramente da primeira dificuldade. Jesus Cristo, que eu denomino na fórmula, é o Jesus Cristo da fé cristã, aquele do qual o credo de Nicéia-Constantinopla diz: “Ele desceu do céu... Se fez carne na Virgem Maria”. Por outro lado, eu vejo como o Catecismo da Igreja Católica precisa o que é a Encarnação: “Retomando a expressão de São João (“O Verbo se fez carne”, Jo 1,14), a Igreja denomina ‘Encarnação’ o fato de que o Filho de Deus tenha assumido uma natureza humana para cumprir nela a nossa salvação”.[1466] Disto advém que o Jesus Cristo da fé cristã é o Verbo de Deus encarnado, a Palavra de Deus encarnada, a Torá encarnada. Eu então tenho direito de atribuir a Torá a Jesus Cristo. Mas estritamente falando, trata-se da Torá encarnada. Tenho o direito de identificar a Torá encarnada e a Torá simplesmente?

A segunda dificuldade vem de que as duas fórmulas, “Torá” e “Torá encarnada”, não são exatamente equivalentes. Se com efeito, sem nenhuma dúvida, Jesus Cristo é o Verbo encarnado ou a Torá encarnada, ele necessariamente não é a Torá, que talvez seja – ou que é certamente – mais amplo que a Torá encarnada. Necessário é então renunciar ao Verbo e falar preferencialmente do Filho? Este teria a vantagem por ser o linguajar dos símbolos da fé. Nós teríamos então: “Jesus Cristo, o Filho de Deus que se fez homem, é a Torá encarnada”. Mas esta fórmula continua difícil, porque ela não esclarece o elo que existe entre o Filho de Deus e a Torá (encarnada ou não).

Dificuldade por dificuldade, eu voltarei então à fórmula: “Jesus Cristo, o Verbo encarnado, é a Torá”. Porém ela conserva o inconveniente de manter a dificuldade vindo da imprecisão da palavra Torá: Torá encarnada e/ou Torá não encarnada?

Para sair do impasse, eu primeiramente proporia: “Jesus Cristo, o Verbo encarnado, é em si mesmo (be-atsmo) a Torá”. Eu me inspiro aqui na declaração do Rav Nahman de Bratslav: “O Discípulo do Sábio é em si mesmo (be-atsmo) a Torá”. Eu não sei exatamente o que o Rav Nahman entendia por “em si mesmo” (be-atsmo). Eu penso que isto poderia ser: “no mais profundo do seu ser”. Com uma evidente intenção cristã, eu tomo a sua fórmula modificando-a: eu compreendo “em si mesmo” como o equivalente de “em sua pessoa”, então eu proponho: Jesus, em Sua Pessoa (como Filho do Pai) é a Torá. Por certo ele é a Torá encarnada, a Torá limitada, mas esta Torá é una com a Torá ilimitada que em Deus precede a criação do mundo e que procede a esta criação. Nós encontramos o paradoxo da revelação, o paradoxo da Shekhiná que, na sua presença, faz conhecer a ausência. A pessoa de Jesus Cristo é o abismo profundo onde a Torá é, às vezes, no mesmo momento ou no mesmo lugar, limitada e ilimitada. Jesus Cristo é o Verbo ilimitado que, por amor, se limitou ou se abreviou. Segundo todos os mestres fariseus, Deus se limitou ao dar a sua Torá a Israel “no linguajar dos homens”. Segundo Rabi Ishmael, Deus foi mais longe ainda; ele se limitou falando, na sua Torá, “segundo a linguagem dos homens”.[1567] Esta visão da Torá está na raiz da fé cristã na Encarnação. Na humanidade de Jesus, o Verbo encarnado, a Torá é limitada aos limites da inteligência, da vontade e da memória humanas de Jesus. Mas é através de e na sua humanidade limitada, frágil, abaixada, humilhada, crucificada, que ele recebe a exaltação acima de tudo e que realiza a salvação do mundo.[1668] Como estes limites, na sua Pessoa, abrem para a salvação universal, eles próprios são abertos e abrem à Torá ilimitada. Semelhante passagem da Torá limitada à Torá ilimitada é feita em todo judeu, pois cada pessoa em Israel recebeu do Sinai uma voz e uma luz que são a voz e a luz da Torá.[1769] A passagem é feita a fortiori na Pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus, verdadeiro Deus nascido do verdadeiro Deus. É por sua limitação que ele valoriza a Torá limitada em cada pessoa. É por sua limitação que ele dá acesso, para cada um, à Torá ilimitada. É na união com a pessoa de Jesus, a partir do batismo e na eucaristia, que cada cristão pode se tornar com Jesus, na sua Pessoa, a Torá.

Posso pensar eu que esta convicção cristã lance uma luz sobre o apego dos judeus à Torá, que é para eles o apego aos mestres e finalmente o apego a Deus? Minha resposta é sim: do mesmo modo que os judeus me ensinam até onde posso ir, segundo eles, o apego ao mestre e à Torá, assim o cristão pode ensinar até onde vai seu próprio apego.[1870] O cristão pode dizer a Rav Nahman:

É possível que tu te consideres como sendo em ti mesmo a Torá. É possível que tu digas isto, porque um certo contato com os cristãos e um certo conhecimento do Novo Testamento te deram a ideia.[1971] Mas antes eu creio que tu dizes isto porque o vives na verdade: Em ti mesmo, em tua humanidade limitada é a Torá ilimitada. O que tu vives, nós cristãos dizemos que Jesus o vive em sua pessoa. O que tu vives, tu o recebes da Shekhiná que está em ti, porque o Espírito Santo está sobre ti. O que nós vivemos, nós cristãos, nós o recebemos do Filho de Deus que é a Shekhiná e a Torá.

O salto da fé cristã, sobre um fundo de continuidade, consiste em ver no próprio Jesus Cristo, na Sua Pessoa, a Shekhiná e a Torá. Por sua Encarnação, o Filho de Deus deu a cada um, através da fé, o meio de se unir a Ele, a possibilidade de se tornar Nele filho no Filho, de se tornar, cada um em si mesmo, cada um em sua própria pessoa unida à Sua Pessoa, não só uma Torá viva, mas a Torá. Há no Judaísmo uma fortíssima valorização da comunidade, da solidariedade, entre as pessoas e as gerações. Se a fé cristã é dom de Deus, que faz dos cristãos filhos no Filho, ela é bem brilhante para fazer ver o que os judeus provam quando se ocupam com a Torá. Ela recebe dos Judeus o testemunho da alegria da Torá (simhah shel Torah). Ela se regozija em viver, em ressonância com a alegria da Torá dos judeus, a alegria do Espírito santo que faz conhecer Jesus Cristo como Senhor e Filho do Pai que o enviou (1Cor 12,3; Jo 17,3).


 [1]* Irmão Pierre Lenhardt, Religioso da Congregação dos Religiosos de Nossa Senhora de Sion (NDS), nasceu em Strasbourg em 5/11/1927 e faleceu em Paris, no dia 01/07/2019. Mestre em Teologia e Estudos Judaicos. Foi professor dos Institutos Católicos de Paris e de Lyon, da Escola Bíblica de Jerusalém, do Instituto São Pedro de Sion-Ratisbonne e do CCDEJ de São Paulo. Especializou-se em línguas bíblicas e em Talmud. Escreveu diversos artigos e os seguintes livros: À l ́écoute d ́Israël, en Eglise (À escuta de Israel, na Igreja), Paris: Parole et Silence, Tome I, 2006 e Tome II, 2009; L ́Unité de la Trinité: à l ́écoute de la Tradition d ́Israël, en Eglise, Paris: Parole et Silence, 2011, publicado nesta coleção, em 2019 com o título: A Unidade da Trindade: À escuta da Tradição de Israel, na Igreja; e sua obra autobiográfica: Une vie chrétienne à l ́écoute d ́Israël (Uma vida cristã à escuta de Israel), Paris: Parole et Silence, 2020 que será o XV volume da Coleção “Judaísmo e Cristianismo”.

[254] Esta última parte de minha exposição é aquela que mais tenho no coração e aquela pela qual eu devo tomar o risco de parecer simplista, ingênuo ou arrogante. Lamento não poder melhor expressar o que quero dizer como conclusão. Faltou-me tempo para consultar os amigos que me encorajaram a escrever estas linhas. Se Deus quiser, eu corrigirei e complementarei o que proponho hoje levando em conta a sua reflexão e seus trabalhos que já muito me ajudaram.

[355] T.J. Pesahim 5,5, 32 c.

[456] Is 41,8-9; 42, 1.19; 43,10; 44, 1-2.21; 49,3.

[557] M. Makkot 3,16. É razoável pensar que “sua justiça’ visa a justiça do “servo” (Israel).

[658] Mishna Yadayim 4,3; T.B. Hagigah 3 a.

[759] Sifre sobre Dt 11,13, p. 86. Cf., por outro lado, Rashi (1040-1105) sobre T.B. Shabat 105 b, le-sefer Torá she-nisraf: “Aquele que vê um livro da Torá destruído pelo fogo deve rasgar (sua veste) ... É preciso agir do mesmo modo quando uma alma de Israel for levada (pela morte), pois não há ninguém em Israel que esteja vazio de Torá e de mandamentos”. É através da relação “mestre-discípulo” que se mantém a continuidade da Torá. Cf. meu artigo: “Voies de la continuité juive-Aspects de la relation maître-disciple...”, RSR 66, 1978, p. 489-511, [publicado no primeiro tomo do livro À escuta de Israel, na Igreja, cap.2, p.31-57, NR].

[860] T.B. Sanhedrin 101 a-b; ver também o que Rabi Eliezer dizia de si mesmo em T.B. Sanhedrin 68 a.

[961] T.B. Berakhot 62 a; ver também Sefat Emet (Rabi Yehudad Arieh Leib Alter de Ger, 1847-1905), Shavuot, 423: “a ação dos Justos é Torá”.

[1062] Cf. S. Schechter, “The Chasidim”, em Studies in Judaism, First Series, Filadélfia: 1945, p. 1-45; G. Schollem, Les grands courants..., p. 362-364; Major Trends in Jewish Mysticism, New York: 1946, p. 344; S.H. Dresner, The Zaddik, New York, 1974, p. 123 e p. 277, nota 26.

[1163] Liqutey Moharan I, § 207, 112 d.

[1264] Sihot ha-Ran, § 131.

[1365] O “segredo” (sod) e a prática do segredo são mantidos na tradição de Bratslav. Cf. M. Piekarz, Studies in Braslav Hasidism (em hebraico), Jerusalém: Bialik Institute, 1972, p. 10-16.

[1466] Catecismo da Igreja Católica, § 461.

[1567] Sifre sobre Nm 15,31, p. 131.

[1668] Cf. Fl 2,6-11 e Catecismo § 461.

[1769] Cf. a Mekhilta de-Rabi Ishmael sobre Ex 20,18, p. 235 e Rashi citado acima.

[1870] Uma tradição anônima, provavelmente anterior à destruição do segundo Templo, ensina que se apegar aos Sábios (de Israel) e aos seus discípulos é se apegar a Deus. Cf. Sifre sobre Dt 11,22, p. 114-115. Para um cristão, se apegar a Jesus Cristo pela fé é ter a vida eterna (Jo 6, 40.47; 11, 25-26) e ver Jesus Cristo é ver o Pai (Jo 14,9).

[1971] O Rav Nahman passou o último ano de sua vida (1810-1811) em Uman, na Ucrânia perto de Bratslav, onde encontrou os “maskilim” (judeus “esclarecidos”) leitores do Novo Testamento. Cf. A. Green, Tormented Master, New York: Schocken Books, 1981, p. 252-266.