Os Irmãos em Gênesis: Caim e Abel - Aprendendo com a Literatura Rabínica e "com a Tradição de nossos pais" (Gl 1,14) – Talmud Torah – Pe. Fernando Gross

CAIM E ABEL

Honra às senhoras! Uma voz feminina canta a oração inaugural. Uma declaração de nascimento expressa por Eva face ao Céu: “Eu adquiri (kaniti) um homem com Deus”. A primeira mãe reconhece a benção divina através do seu filho primogênito, expressando este sentimento filial da aquisição (“meu bebê!”).
O nome Kayn (Caim) advém deste kaniti. Caim é entendido como “Eu adquiro”.

Entretanto, a forma de culto mais frequente em Gênesis se expressa primeiramente através da oferenda, depois pelo sacrifício. A oferenda, min’ha “o que é depositado”, traduz o gesto religioso inaugural de Caim e Abel: “E isto aconteceu no início dos dias (no início de um ciclo agrícola), e Caim (o agricultor) levou frutos da terra, oferenda ao Eterno. E Abel (o pastor) levou também as primícias dos seus ovinos e de sua gordura...” (Gn 4,3-4).

Dado o fato de que a humanidade permanecerá vegetariana até depois do dilúvio (segundo Gn 9,3), sigamos a sugestão de um midrash, isto é que Abel não sacrifica um animal, mas oferece chumaços de lã que cobrem porções de queijo. [1]
O fogo e a água[2] 

Em hebraico, ‘céus’ se diz shamaïm, um masculino na forma dual e que indica então um par (como todos os nomes que terminam em aïm: ênaïm = olhos, yadaïm = mãos etc.). Rabi Obadia Sforno[3] considera que a raiz de shamaïm é shan ‘lá’, (adv.de lugar, ndt), significando a forma dual: longe de todas as direções. O céu representa então o inatingível em relação a terra onde nós agimos.

Anteriormente, um Midrash já se interessava pela forma dual de shamaïm: “E Deus denominou a extensão (celeste) shamaïm. Rav decompõe shamaïm em esh – maïm ‘fogo – águas’. Rabi Aba bar Kahana ensina em nome de Rav: ‘O Santo, bendito seja ele, tomou o fogo e a água, esfregou um no outro, e de lá nasceram os shamaïm’” (Gênesis Rabba, cap. 4).

Os céus foram criados a partir de dois contrários, por uma operação shêmica.

Os céus representam a harmonia dos contrários; o mundo da utopia realizada, onde o lobo e o cordeiro vivem juntos, onde Caim e Abel já conhecem a verdadeira fraternidade. Os céus representam o “já” e a terra o “ainda não”; mas sem a cabeça nas nuvens dos utopistas, o “ainda não” jamais poderá vir.
‘Carregar’, ‘suportar a falta’. A primeira ocorrência se encontra na declaração do perdão de Deus após o bezerro de ouro: “Eterno! Eterno! Deus misericordioso e terno, lento para a cólera, transbordante de bondade e de verdade. Que guarda seu amor até a milésima geração e suporta (tolera) a falta...” (Ex 34, 6-7). A falta, a culpa oprime o faltoso como o aflito Caim diante de Deus: “minha falta é demasiadamente pesada para suportar” (Gn 4,13).

Antes de Abraão, Deus não prova as Suas criaturas. Ele coloca Adão e Eva diante de Sua lei e Caim face à sua fraternidade. Ele lhes pede assumir a sua humanidade de criaturas e de irmãos. Sem dúvida, viver constitui uma prova, a prova do ser humano, ‘simplesmente’, a prova de assumir as provas da vida. Mínimo sindical do Criador e denominador comum de todos os mortais. “Malgrado tu, tu nasces, malgrado tu, tu vives, malgrado tu, tu morres, malgrado tu, tu prestarás contas diante do Rei dos reis” (Mishna Avot 4,22).

O Senhor é o Deus de Abraão porque a ele deu a ouvir a sua voz. Raros são os homens aos quais endereçou a palavra deste jeito. Nos primeiros capítulos do Gênesis, Deus com freqüência toma a palavra, mas é raro que um interlocutor esteja lá para acolhê-la[4]. Basta expressar-se para que nasça o mundo e a humanidade comece a sua história. Só Adão e Eva, a serpente e Caim, Noé o justo, encontram-se a ouvir, nas horas decisivas de sua existência, as entonações desta palavra soberana, portadora de bênçãos e maldições que determinam os destinos da humanidade.

(Abraão e sua historia)


Como o Sacramentário Leonino o dizia, num prefácio que passou às outras liturgias latinas, «é Abel quem inaugurou a figura deste sacrifício, o cordeiro pascal da Lei o representou, Abraão o celebrou, Melquisedec o mostrou; mas é o verdadeiro Cordeiro, o sumo sacerdote eterno quem o realizou».

As Constituições Apostólicas, 7,37, pedem: «Recebei as preces de vosso povo como vós recebestes os presentes dos justos no seu tempo. Vós, em primeiro lugar, olhastes e aceitastes o sacrifício de Abel, aquele de Noé ao sair da arca, aquele de Abraão após sair da terra dos Caldeus». Contudo, este tema deveria naturalmente penetrar nas liturgias eucarísticas. Ele ocorre duas vezes na liturgia de são Tiago. A primeira na oração do incenso: «Deus que recebestes os dons de Abel, o sacrifício de Noé e de Abraão, o incenso de Aarão e de Zacarias, recebei este incenso de nossa mão, de nós pecadores [25]». A segunda está na oração das oferendas: «Lançai um olhar sobre o nosso sacrifício espiritual aqui presente e recebei-o como vós recebestes os dons de Abel, os sacrifícios de Noé, as oferendas de Abraão[26]». Esta última oração é encontrada também na liturgia de são Basílio segundo o mais antigo manuscrito que nos foi conservado[27]. Yuakim Mubarac. Cahiers Sioniens p. 1-120. Nº 2, Junho de 1951.


“O olho estava no túmulo e olhava Caim”, nota o poeta (?)


Concluamos com uma reflexão atualizada sobre o Yad va-Shem, o memorial e o nome (Is.56,5). Tal é, com efeito, o nome que foi dado ao memorial da Shoa em Jerusalém. É o que evoca o memorial das crianças no qual algumas luzes se multiplicam em múltiplos luzeiros semelhantes às estrelas na noite. Caminha-se através dele no escuro, enquanto que os NOMES das crianças, muito cedo desaparecidas (mortas) são declinados um a um.

É o que lembra o vale das comunidades desaparecidas, cujos NOMES estão gravados na pedra. É o que significa a chama permanente, reavivada todos os dias, em memória dos 6 milhões de vitimas exterminadas nos campos, das quais os NOMES estão inscritos em grandes lajes sombrias. É a significação do vagão suspendo à beira do abismo, e onde foi encontra inscrito na madeira este poema inacabado:

Meu nome é Eva, estou aqui com meu filho Abel;
Se virdes meu filho Caim, filho de Adão, dizei-lhe que...

Através destes NOMES simbólicos, advínhamos que é o ser humano, a imagem de Deus, que se queria destruir. É o que também quis se transmitir na alameda dos justos onde estão inscritos ao pé de uma árvore plantada em sua memória, os NOMES daqueles que arriscaram a sua vida para salvar os Judeus.

Yad vaShem, não um sinal de morte que evocaria de uma maneira mórbida as atrocidades, mas sinal de vida que triunfa sobre a morte e que continua na vida deste povo que se lembra.


O Templo Sagrado em Jerusalém ficava no Monte Moriyá. D'us fez com que o Altar de Cobre, ficasse num local muito especial sobre aquela montanha. Foi construído exatamente no mesmo local do qual D'us pegou terra com a qual criou o primeiro homem, Adão; onde a humanidade ofereceu seus primeiros sacrifícios através de Caim e Abel (filhos de Adão); onde Nôach (Noé) construiu um altar após o Dilúvio; e onde Avraham atou Yitschac com intenção de sacrificar seu filho ao Todo-Poderoso.


As datas de eventos importantes são adicionadas ao Targum. A criação do mundo, o sacrifício de Isaac, a saída do Egito e a libertação escatológica são associados ao dia 15 de Nisan, dia da Páscoa (TN Ex 12,42). Abraão foi circuncidado no dia 14 de Nisan (Tj I Gn 17,26); ele encontrou-se com Melquisedec na véspera da Páscoa (Tj I Gn 14,13). Enfim, Caim e Abel apresentam as suas oferendas no dia 14 de Nisan (Tj I Gn 4,3).

A interpretação sinagogal da Escritura, porém, obriga o Targumista a resolver certas dificuldades suscitadas pela palavra de Deus. “Os sangues” de Abel significam a multidão de justos que devia nascer de Abel (TN Gn 4,10).


Em Tj I Gn.4,2, Caim é definido como “um homem que cultiva a terra”. Esta expressão advém de Gn.9,20 que apresenta Noé como um ish’adamah. A relação entre os dois textos é permitida pois os dois contêm a palavra adamah.


Pirqe de Rabbi Eliezer.
Embora a redação deste midrash seja tardia, - alguns quiseram situá-la no 8º século, - nós mencionamos este midrash entre as obras tanaítas, pois muitas das suas partes retomam materiais muito antigos. Analisaremos, primeiramente, o seu conteúdo:
1-2 são uma biografia de Rabi Eliezer que falta em alguns manuscritos.
3-11 ratam do ma’aseh bereshit. Os problemas da merkaba são abordados no capitulo 4 e aqueles do calendário nos capítulos 6-8.
12-14 comentam as núpcias de Adão e Eva como obra de misericórdia.
15-16 são um tratado de moral sobre os dois caminhos e sobre as obras de misericórdia.
18-20 tratam do Sábado.
21-25 apresentam a degradação progressiva da humanidade desde o pecado de Caim até à construção da torre de Babel.
26-31 reproduzem as tradições antigas sobre as dez tentações de Abraão.
32-34 comentam a vida de Isaac.
35-39 meditam aquela de Jacó.
40-47 apresentam a vida de Moisés.
48-52 falam das visões de Abraão referentes aos dois exílios.
Muitos autores[5] elucidaram os contatos entre este midrash e o Targum Jonatan, em particular através das tradições da criação de Adão. O Targum Jonatan busca harmonizar as tradições opostas do midrash. As partes sobre o ma’aseh bereshit (3-11 e 48-49) são também antigas.


Pirke avot
,3). “E Deus disse: haja o firmamento” (Gn 11,6). “E Deus disse: ajuntem-se as águas” (Gn 1,9). “E Deus disse:A terra faça brotar sementes” (Gn 1,11). “E Deus disse: Façam-se luzeiros no firmamento” (Gn 1,14). “E Deus disse: Fervilhem as águas” (Gn 1,14). “E Deus disse: A terra produza seres vivos” (Gn 1,24). “E Deus disse: Eis que vos dou plantas” (Gn 1,29). “E Deus disse: Façamos o homem” (Gn 1,26). “E Deus disse: Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Rabbi Jirmeias inclui: “Deus os abençoou dizendo: Crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,22) e exclui: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 1,18) (ARNB 36).

- Porque a Escritura ensina isto? Qual a necessidade que todos os que vem ao mundo ouçam isto? Isto ensina que quem põe em prática até mesmo um só preceito, quem observa mesmo um só sábado, e quem mantém em vida uma só pessoa, a Escritura lhe credita como se fizesse subsistir o mundo inteiro, que foi criado com dez palavras. Enquanto que alguém que comete uma só transgressão, quem profana um só sábado ou faz perecer uma só pessoa, a Escritura lhe imputa como se fizesse perecer o mundo inteiro, criado com dez palavras. De fato assim lemos a propósito de Caim, que matou seu irmão Abel, como está escrito: “A voz dos sangues de teu irmão clamam a mim” (Gn 4,10). Um só sangue foi derramado, e no entanto aqui se fala de muitos “sangues”. Isto ensina que o sangue de seus filhos, de seus sobrinhos e de seus descendentes, até o fim de todas as gerações que teriam sido originadas dele, todos juntos se levantaram e gritaram diante do Santo, bendito seja. Daqui podes aprender que um só homem vale tanto quanto toda a criação. (ARNA 31).


Alguns aspectos da Figura de Moisés na Tradição de Rabbínica. - Renée Bloch. A briga de Caim e Abel

Adão tinha dois filhos, Caim e Abel. Os dois eram diferentes. O filho mais velho, Caim, era orgulhoso e egoísta. Abel, porém, era humilde. Adão disse a seus filhos: "É conveniente que vocês ofereçam um sacrifício a D’us no altar (Mizbêach) que eu construí." Caim era agricultor e colhia lindas frutas em toda as estações. Mas
decidiu guardar as melhores para si. Caim comeu até que ficou satisfeito e então ofereceu para D’us as sobras. Ele nem mesmo ofereceu para D’us as frutas das árvores, mas apenas frutos da terra. O irmão mais novo, Abel, era pastor. Ele matava suas melhore e mais gordas ovelhas e colocava-as no altar. D’us viu que Abel O honrava com o melhor que tinha, enquanto o orgulhoso Caim trazia um sacrifício miserável. E porque Ele estava satisfeito com o sacrifício de Abel, D’us mandou um fogo do Céu que devorou o sacrifício de Abel e não o de Caim. Caim ficou com ciúmes e com vergonha, porque D’us aceitou o sacrifício do irmão mais novo e não o seu. D’us viu o embaraço de Caim e falou-lhe, encorajando-o. "Você pode melhorar se quiser," disse Ele. "Você não trouxe um sacrifício digno, mas pode aprimorar-se no futuro e tornar-se maior do que seu irmão Abel." Mas, ao invés de fazer Teshuvá, Caim não quis escutar. Quando Caim e Abel estavam juntos no campo, Caim começou a discutir com o irmão. "Não é justo," queixou-se ele. "D’us aceitou seu sacrifício e não aceitou o meu." "D’us é sempre justo," respondeu Abel. "Ele aceitou a minha oferenda porque Ele gostou do modo como o ofereci. Ele recompensa os tsadikim e castiga os resha'im." "Você está errado," respondeu Caim. Enquanto continuavam discutindo, Caim ficou irado, ergueu uma pedra e acertou na cabeça de Abel, matando-o. Como Abel era um tsadic, sua alma voou direto para o Gan Eden e D’us lhe deu as maiores recompensas. Caim queimou o corpo de Abel; depois, pegou todas as ovelhas do irmão e trouxe-as para sua própria tenda.

D’us perguntou a Caim:

"Onde está teu irmão Abel?" "Eu guardo os campos", respondeu Caim, "devo guardar também meu irmão para saber onde ele está?" Caim pensava que D’us sabia apenas o que se passava lá no alto e que não estava a par de tudo o que se passava na Terra. D’us falou: "Eis que o sangue de seu irmão clama por Mim." "Como podes saber?", falou Caim. "Tolo, Eu sei tudo," respondeu D’us, "e vou castigá-lo. De agora em diante, quando você cultivar a terra, ela só produzirá uma pequena quantidade de grãos. Além disso, não poderá viver em paz em um lugar fixo; irá perambular de um país a outro." Quando Caim ouviu as palavras de D’us, admitiu: "Realmente, pequei muito. Tenho medo que enquanto perambular pela terra sem abrigo os animais me matarão." "Vou protegê-lo," assegurou D’us, pondo em sua testa Meu Nome. Quando os animais a virem, ficarão com medo e não o atacarão." Os descendentes de Caim foram maus; não sobrou nenhum, todos morreram mais tarde no Mabul (Dilúvio). Adão teve um terceiro filho, Shais, e dele descendeu o justo Noé


Quando Adam pecou, a Shekhinah subiu ao primeiro céu. Quando Caim pecou, ela se retirou ao segundo céu. Quando a geração de Henoch pecou, ela subiu ao terceiro céu. Quando a geração do dilúvio pecou, ela se elevou até o quarto céu. Quando a geração da divisão das línguas pecou, ela avançou até o quinto céu. Quando os homens de Sodoma pecaram, ela se elevou até o sexto céu, e quando os Egípcios pecaram, ela subiu ao sétimo céu. Sete homens justos se elevaram para conduzir a Shekhinah das regiões superiores às regiões inferiores. Foram estes: Abraham, que a baixou do sétimo ao sexto céu. Isaac, que a trouxe do sexto ao quinto. Jacob, que a conduziu do quinto ao quarto. Levi, que a baixou do quarto ao terceiro. Qehat a trouxe do terceiro ao segundo. Amram a fez baixar do segundo ao primeiro, e Moisés a baixou das regiões superiores às regiões inferiores[6].

O que podemos fazer para que a Shechiná (Santidade) retorne a nosso meio

Na época em que existiam o Mishcan e o Bet Hamicdash, a Shechiná de D'us descia do céu e descansava no aron do Côdesh Hacodashim (Santo dos Santos). Depois da destruição do Bet Hamicdash, a Shechiná de D'us afastou-se deste mundo.

O que podemos fazer, pois, para que a Shechiná volte a ficar entre nós?

A resposta poderá ser encontrada em Pirkê Avot (3:6, em alguns sidurim é 3:7).

"Se dez pessoas se sentam juntas e estudam a Torá, a Shechiná de D'us vem repousar sobre elas. E também se cinco, três ou somente duas pessoas estudam juntas a Torá, a Shechiná repousa sobre elas. E até mesmo se um só judeu - em qualquer lugar da terra - se senta para estudar a Torá, a Shechiná repousa sobre ela."


Educar para as virtudes - Inveja e ciúmes - Do livro ´ FAMÍLIA, SANTUÁRIO DA VIDA´ do Prof. Felipe Aquino

Outro mal que deve ser combatido nos filhos é a inveja que se aninha no coração. Ela é mais forte e mais comum no filho inseguro; este sente-se mal diante do sucesso dos irmãos e dos amigos, e torce para que esses fracassem. O sentimento de inveja e de ciúme deve ser combatido pela benevolência, que consiste em pensar bem dos outros, desejar o seu bem, falar bem deles, e ajudá-los nas suas necessidades. Por inveja aconteceu o primeiro assassinato da humanidade, um fratricídio, Caim matou Abel. E a bíblia nos assegura que foi por inveja que o pecado e a morte entraram em nossa história. “É por inveja do demônio que a morte entrou no mundo…” (Sb 2,24). Foi também por inveja que os irmãos de José o venderam para a caravana que ia para o Egito. Também Jesus foi morto por inveja (cf. Mt 27,18), por parte daqueles que não tinham o seu poder e a sua autoridade. “A inveja e a ira abreviam os dias, e a inquietação acarreta a velhice antes do tempo” (Eclo 30,26). A inveja é um baixo sentimento; próprio daqueles que não se conformam com o próprio fracasso ou com uma posição inferior aos outros. Devemos ensinar aos filhos se contentarem com o que são, com o que têm e com o que fazem, e lutar para superar a si próprios, sem a necessidade de derrubar os outros.


Melamed – Caim e Abel - Philippe Haddad

Caim e Abel – O segundo texto da Torah é aquele de Caim e Abel. Pode-se considerar esse como o primeiro da história humana, na medida em que os heróis são eles gerados pelos seus pais.
A Torah coloca aqui a fraternidade enquanto um projeto moral, não como uma evidência de paciência, pelo contrário, toda a fraternidade corre o risco de se tornar um fratricídio (a memória original da humanidade). Encontramos o mesmo cenário do trecho do Jardim do Éden, com os mesmos tipos 'de atores': Deus e Sua Lei, dois heróis em dificuldade de diálogo, aqui a serpente está ausente, mas a advertência de Deus para Caim subentende-se sua presença.

O livro de Gênesis se apresentará como um longo caminho para tirar o fratricídio e avançar em direção a uma fraternidade assumida na paz.

Gn 4,1-16
Análise Estrutural:
v. 1 e v.2 : Nascimento de Caim e Abel
v. 2 a v.5: As oferendas dos irmãos e a resposta divina
v.6 e v.7: Advertência a Caim
v. 8 : A morte de Abel
v.9 e v.10: Diálogo entre Deus e Caim
v. 11 a v.16: Punição de Caim

Análise Temática:

Notas: a primeira história humana começa com Caim e Abel, pois são os primeiros a serem gerados por seus pais (enquanto Adão e Eva foram criados por Deus. A mais podemos notar que ela se situa fora do Jardim do Éden, isto quer dizer, no nosso tempo histórico.

Nascimento de Caim e Abel

Adão conheceu Eva: em hebraico "conhecer" significa saber, amar e ter uma relação íntima. Lembramos que é Eva quem nomeia aqui, como Deus nomeou o dia e a noite, ou Adão que deu nome aos animais.

Ramban[8] oferece uma significação interessante dos dois nomes, diferente da interpretação de Rashi: pode significar também com o Eterno. Quando Deus me criou com meu marido, Ele somente nos criou, mas agora nós somos associados com Ele".

Citação de Rashi: Mas me parece mais justo que ela tenha dito: esse menino eu adquiri pelo Eterno, pois quando nós morrermos, ele continuará, em nosso lugar, a servir seu Criador. E tal é a opinião de Onkelos que traduziu "diante do Eterno".

OU então "et Hashem" pode significar em referência diante do Eterno" como "Henoc caminhou diante de Deus" (Gn 5,22) ou "Noé caminhou diante de Deus" (Gn 6,9).

Ela nomeou o primeiro em referência à aquisição e o segundo em referência à vaidade, pois a aquisição de um homem parece à vaidade, mas ela não quis explicitar essa noção, isso se deve porque o segundo nome (aquele de Abel) não foi justificado. (...)


Pistas para continuar a reflexão:

- Através desses dois nomes, está a relação do homem diante do mundo que se coloca: estar por vezes no mundo (a aquisição) e saber que nada pertence ao homem (vaidade). O judaísmo oscila entre esses dois polos, recusando uma tendência extrema: o materialismo somente ou o espiritualismo somente. E você, o que acha?
O cristianismo vive nessa polaridade também? Vivemos na vida pessoal essa polaridade também?

Os ofícios de Caim e Abel

Caim trabalha a terra como seu pai Adão. Abel é o primeiro pastor.

Rashi[9] dirá: 2 – pastor de pequeno rebanho. Quando ele constatou que a terra era maldita, ele se afastou desse trabalho.

De um modo geral, a Torah via com bons olhos a função de pastor (os Patriarcas, Moisés, Davi), o pastor do rebanho se torna pastor de pessoas. Por outro lado, a função agrícola não é desprezada, e muitas das mitsvot (preceitos) estão ligados à terra de Israel (os cantos dos pobres, os primeiros frutos, etc.) Se a oferenda de Caim é rejeitada não é porque ele era agricultor, mas por causa da intenção que precedeu esse gesto.

Oferendas dos Irmãos e Resposta Divina

Caim teve a iniciativa do gesto, mas foi a oferta de Abel que foi aceita. Por que Deus aceitou a oferta de Abel, mas não aceitou a de Caim? Deus seria arbitrário? A resposta dos comentadores se referem à justiça divina.

Ibn Ezra[10] cita: "As primícias de seu rebanho: está aqui uma prova que Caim não trouxe as primícias dos seus frutos".


Pistas para continuar a reflexão:

Existiria parcialidade, arbitrariedade nas escolhas divinas? Deus julga a intenção (hnwwk). E esse é um grande tema nos discursos dos profetas. Por exemplo Isaías 29,13: "Disse o Senhor: "Esse povo me procura só de palavra, honra-me apenas com a boca, enquanto o coração está longe de mim. Seu temor para comigo é feito de obrigações tradicionais e rotineiras". O primeiro texto humano coloca imediatamente a questão da sinceridade do ato religioso perante Deus. São duas realidades: ou o homem se reconhece como criatura de Deus, e oferece as primícias a Deus, ou o homem quis se apropriar do mundo e deixa o resto para Deus. Em outras palavras Caim diz: eu primeiro, Deus depois; Abel: Deus antes de tudo, eu depois. Consequência: Caim estava abatido e desencantado. Os feitos dos outros pode levar à cólera e à depressão. Cf. Amã que não suportava a atitude de Mardoqueu no Livro de Ester e que vai desenvolver uma cólera genocida.

Advertência de Deus

Deus primeiramente não dialoga entre com Caim, mas uma advertência. O versículo Gn 4,7 sublinha o livre arbítrio do ser humano. E em nenhum momento Deus o impõe a decidir. Vejamos o comentário de Yonathan ben Ouziel[11] que parafraseou o versículo:

Se você melhorar sua conduta, tua falta será perdoada, mas se tu não te emendar a tua conduta neste mundo, tua falta será guardada para o dia do julgamento. E saiba que a falta se encontra à porta do teu coração e eu libertei a má inclinação da tua vontade. Ela quer te fazer cair, mas quanto a ti domina essa má inclinação por teu mérito ou pela tua falta.

Pistas para continuar a reflexão:

O discurso de Deus coloca o ser humano diante da sua liberdade (como com Adão): ou você melhora (e você pode se aperfeiçoar pelo exercício da sua vontade) ou você seguirá sua natureza egocêntrica que não conhece limites ( o ser humano pode assim ir até ao assassinato, até à barbárie). Desde o capítulo 4 de Gênesis, esse tema é claríssimo. Deus não criou um anjo, mas um ser de desejo que pode satisfazer seu desejo ou dominá-lo. Tudo depende portanto do bom uso da vontade (os animais não têm vontade, mas instintos).

Mas o que faz alguém ser assassino, ser homicida de seu irmão? A Torah não diz muito: em um versículo ela fala de uma palavra de Caim para Abel (quais palavras?) e depois o assassinato no campo. A Torah descreve o fato como possível. Se um homem está dividido entre o bem e o mal, isso quer dizer que ele pode ir até ao extremo de suprimir uma vida ou salvar uma vida.

Nahmanides relaciona os propósitos de Rachi e de Ibn Ezra, antes de apresentar seu próprio pensamento, considerando a natureza da palavra proferida por Caim:

Ramban: Sentido de "Caim disse a Abel seu irmão": Ele procurou palavras de discussão para bater boca com ele, depois ele encontrou pretexto para matar, palavra de Rashi. E Rabbi Abraham (Ibn Ezra) escreveu: me parece que ele lhe disse (Caim para Abel) as reprovações que Deus lhe fez. E depois disso, devemos ler o início do versículo com o final dele. Ele lhe disse: Saiamos para o campo, e lá ele o matou em segredo.

Os três exegetas procuraram o pretexto do assassinato, permanecendo ligados ao sentido literal. Para Rashi foi a cólera expansiva. Para Ibn Ezra, foi o fato de ter sido admoestado por Deus. Para Ramban foi é a cólera dissimulada.

Diálogo entre Deus e Caim

Nós iremos reencontrar o esquema do capítulo 03 quando Deus pergunta a Adão e Eva sobre o que eles fizeram. Deus não pune imediatamente, Ele entra em relação com a sua criatura (a consciência moral não é ela uma pequena voz de Deus?) – o ser humano pode reprimir e sufocar essa voz.

Deus pergunta a Adão : - Onde está você?

Adão recusa a assumir a sua falta

Deus pergunta a Adão:
- "Quem disse que você estava nu?"
Adão acusa Eva
Deus pergunta:
- "O que você fez?"

Deus pergunta a Caim:
- Onde está teu irmão?
Caim recusa a assumir seu crime.
Ele responde à questão com outra questão (Rashi):
- "Sou eu o guarda de meu irmão?"

Existe aqui um jogo de questões. Deus pergunta ao ser humano para que situe a sua humanidade (onde está você, onde você se encontra?), quem te disse? Que vocês anda escutando? A voz de Deus ou outras vozes, de outro poder? "O que fizeste?": faça a constatação da sua falta.


Pistas para continuar a reflexão:
Deus não conseguiu ajudar a guiar Caim no bom caminho. Deus não pode agir por cima das escolhas humanas. Deus somente pode advertir. A liberdade de Deus termina onde começa a vontade do ser humano.


Midrasch Tanhouma Capítulo 09
Quando o Eterno Senhor disse a Caim: "onde está Abel, teu irmão?" Ele respondeu: "Sou eu o guarda do meu irmão?" És Tu o guardião de todas as criaturas e me perguntas? Parábola: um ladrão que rouba as coisas à noite,sem se fazer notar, mas de manhã é capturado pelo guarda. Esse lhe diz: Por que você roubou esses objetos? E o outro respondeu: Eu sou um ladrão e não vou abandonar o meu trabalho, mas quanto a ti, que guardas a porta, porque não fizeste bem o teu trabalho e me colocas essa questão? Assim também Caim afirmou: com certeza eu o matei porque Tu sim é que criaste a malvada inclinação, és Tu o guardião de tudo, e Tu me deixaste matá-lo, foste Tu que o mataste, Tu que a ti te fazes chamar "Eu" (não ler "sou eu o guardião do meu irmão", mas "o Eu é guardião do meu irmão", pois se Tu tivesses aceitado a minha oferenda eu não o teria
matado. Imediatamente Deus respondeu: "O que fizeste, o sangue do teu irmão grita em Minha direção".

Pistas para continuar a reflexão:

Esse é um Midrash de grande importância: Caim acusa Deus de ter criado um mundo onde o mal é possível, onde a violência é possível, onde o assassinato é possível. Para Caim, é portanto Deus que é responsável pela desordem do mundo, Caim tem razão sob certo aspecto: Deus não criou um anjo, mas um ser apaixonado, entre o bem e o mal. Esse foi o Seu projeto inicial. Deus não responde diretamente à questão: por que ter criado tal homem, por que escolheu a oferenda de Abel e não a de Caim. A única resposta divina nesse Midrash é "O quê fizeste?" Para o judaísmo rabínico, a questão da responsabilidade de Deus diminui diante da questão da responsabilidade do ser humano. Diante da questão da Shoa, os rabinos não acusavam a Deus, eles não diziam mais que o povo judeu era culpado de uma falta, mas diziam: nós vivemos num mundo onde o inocente pode ser assassinado, sem razão. E Deus incansavelmente retornará ao ser humano essa pergunta: "O que fizeste?"

A punição de Caim

Um novo diálogo nos é oferecido. Deus anuncia a Caim que "os sangues de teu irmão sobem em direção até Mim". O sangue dos assassinatos grita sempre do fundo da terra. Por que está escrito no plural "os sangues"? Os comentadores Onkelos, Rashi, Ibn Ezra explicam: "o sangue de Abel e o sangue de sua descendência".


Pistas para continuar a reflexão:
O que é afinal o ser humano? É ele próprio e sua descendência em potência. Assassinando um ser humano, igualmente se matam todos aqueles que viriam após ele até o fim dos tempos. De onde vem a fórmula clássica do Talmud: "o que é um ser humano? Um mundo inteiro".


Talmud da Babilônia – Tratado Sanhedrin página 37 a

O sangue do teu irmão: pois o seu sangue foi jogado entre as árvores e as pedras. É porque o ser humano foi criado de forma única, para te ensinar que quem mata uma vida em Israel é como se tivesse destruído um mundo inteiro, e quem salva uma vida em Israel, é como se tivesse salvado um mundo inteiro.

Foi a partir da terra que engoliu o sangue de Abel que Deus amaldiçoou Caim.

Pistas para continuar a reflexão:

Lembremos que rwra (maldito)é o contrário de kwrb (bendito). kwrb é a bênção, a abundância, a profusão; rwra é a falta, a carência que vai até à esterilidade. Para lembrar: na Bíblia, maldizer não significa ir para o inferno ou perder a sua alma, mas se encontrar numa situação sem futuro, numa vida, geográfica ou psicológica, errante.
A explicação de Ibn Ezra corresponde ao sentido literal: "E agora tu és maldito para a terra, pois ele irá semear e plantar, ele irá trabalhar a terra, mas a terra não oferecerá mais a colheita e o fruto. Ele será obrigado a ir em direção a uma terra distante de Adão seu pai, que viveu próximo ao jardim, mas ele não encontrará a quietude em lugar algum, pois será um errante.

Adão foi expulso do jardim do Éden, Caim foi expulso da sua terra natal. O exílio é a consequência da falta. Caim reconheceu a lembrança da sua falta. Mas as considerações de Rachi e de Ibn Ezra são diferentes:

Rachi: "minha falta é muito pesada para carregar: Essa é uma questão (a minha falta é muito pesada para carregá-la?). Quanto a Ti, tu carregas os céus e a terra, e a minha falta Tu não a podes carregar?
Ibn Ezra: "Para a maioria dos comentadores, Caim reconheceu a sua falta. E "carregar" significa "perdoar" como "ele carrega a falta" (Ex 34,7).

Para Rachi , Caim reconheceu a sua falta, mas ele pede a Deus de carregar a falta como ele carrega o mundo. Aqui Caim tem uma
"característica" cristã de pensamento: Deus deveria carregar o pecado do mundo, senão o homem seria esmagado pelo peso de sua transgressão?
Para Ibn Ezra, Caim reconheceu a sua falta e ele pediu a Deus não de "carregá-la", mas sim de perdoá-la. (Ibn Ezra leu portanto "perdoa minha grande falta"). Aqui Caim é o primeiro penitente, o "baal techouva".


Pistas para continuar a reflexão:

Como o Cristianismo e o Judaísmo consideram essa questão? Se a falta do ser humano é condenada, é preciso que Deus intervenha para salvar o homem da sua falta. O homem é sempre possível de falhar, mas ele tem a esperança da paciência, pois Deus colocou nele as potencialidades de Sua paciência (imagem e semelhança Os criou), Se o ser humano fizer techouva (arrependimento e conversão) Deus o perdoa.

Deus atendeu ao pedido de Caim, Ele permitiu uma comutação de pena de sete gerações:

Ibn Ezra: Sete gerações. Isso significa que o Eterno Senhor reteve a Sua cólera contra Caim em sete gerações e alguns afirmaram que o sinal de Deus foi um chifre,o outros afirmaram que Deus lhe ofereceu a força em seu coração para espantar seu medo (a coragem). E depois Deus lhe ofereceu um sinal até que ele tivesse confiança na Palavra de Deus, mas o versículo nada fala da natureza desse sinal.

Pistas para reflexão e debate:

Justiça dos homens, justiça de Deus. Um tribunal julga um ser humano aqui e agora. É preciso que o malfeitor pague o que é devido e de proteger a sociedade contra outra reincidência. Os homens julgam os atos de um homem perante outro homem. Deus julga o homem na profundeza do seu íntimo, "que sonda os rins e os corações". O julgamento de Deus produz as consequências em longo prazo por causa da falta ou do crime, é por isso que "Deus se lembra da falta dos pais até à terceira e quarta geração" (Ex 20,5), não para punir os posteriores netos, mas a partir do que esses pequeninos são, Deus possa compreender a intenção original do seu posterior avô. Aqui, podemos nos perguntar sobre a longa duração do crime de Caim. Seu arrependimento foi sincero? E sobretudo, que tipo de sociedade iria ele desenvolver? O final da história revela que a violência de Caim não foi controlada, canalizada =. Sete gerações depois, Lamec também matará "um homem por uma ferida, um jovem por causa de um arranhão!" (Cf. Gn 4,23), pois a geração do dilúvio se auto destruirá na violência.

Conclusões:

  • Temos aqui três Personagens colocados diante de nós: Deus, Caim e Abel. Toda personagem bíblica se situa nesse situação "tríplice": Deus é a fonte de Bênção para um e para o outro, todo ser humano se situa diante de Deus e diante do seu próximo. Essa passagem nos revela o conceito fundamental da Torah da liberdade humana e portanto da responsabilidade. Vimos como Deus adverte Caim antes da sua falta e igualmente após o assassinato, ele ainda o interroga: "Onde está Abel?".
  • Diante da análise do julgamento divino (que não é arbitrário, não podemos "julgar" de Deus de ser injusto!). De fato Caim mantém para si as primícias dos seus frutos, quando Abel oferece a Deus as primícias do seu pequeno rebanho, Aquilo que Deus julga não é o conteúdo da oferta, mas a intenção do coração (Kavana). Nós encontraremos novamente essa idéia na legislação da Torah: o rico trará o gado gordo (em função da sua riqueza) e o pobre um punhado de farinha. Em uma sinagoga todos rezam, mas alguns se dedicam mais do que outros na oração. E isso é uma questão importante a ensinar às crianças.
  • Devemos colocar de forma evidente o esquema paralelo do trecho de Adão e Eva e esse de Caim e Abel: Deus adverte o ser humano diante da transgressão, depois interroga o transgressor após a falta ("onde estás tu?" ou "onde está o teu irmão?"). Deus sempre entra em diálogo com o ser humano: julgar não é condenar (cf. Liturgia de Ano Novo – Roch Hashana e Dia do Perdão – Yom Kippour).

É importante mostrar também a paciência divina (cf. Pirket Avot §5) que oferece ao ser humano tempo para corrigir os seus erros, aqui ele suspende a pena aprovada à Caim e a sua descendência. O julgamento divino oferece a muitas gerações ("terceira e quarta gerações"); não para fazer pagar as crianças as faltas de seus pais, mas para julgar com "objetividade" o encadeamento das causas e efeitos. No final, a civilização de Caim desapareceu no dilúvio.