Ela é mais justa do que eu!

Marc Chagall Tamar and Judah

Esta história verdadeira ocorreu nos anos da década de 1970. Rabbi Dr. Nahum Rabinovitch, diretor então do College Jew, o seminário de formação rabínica em Londres, onde eu era estudante e professor, foi convidado por uma organização para um evento de aproximação com o diálogo inter-religioso. Um grupo de bispos da África queriam entender mais sobre Judaísmo. Iria o diretor ser capaz de enviar seus veteranos estudantes para tal compromisso em tal diálogo, num local na Suíça?

Para minha surpresa, ele concordou. Ele me disse que era cético sobre o diálogo Judaico- Cristão em geral por causa que sabia que por séculos a Igreja foi infestada por um anti-Semitismo que era muito difícil superar. Naquele momento, porém, ele sentiam que aqueles Cristãos Africanos eram diferentes. Eles amavam a Tanak e as suas histórias. Eles eram – a menos a princípio – abertos para o entendimento sobre Judaísmo em seus próprios termos. Ele não disse – pensei eu comigo mesmo, mas sabia o que ele pensava sobre já que ele era um dos maiores especialistas do mundo em Rambam – o grande sábio do século XII que tinha tido uma postura não comum justamente com esse diálogo.

Rambam acreditava que o Islamismo foi um monoteísmo originalmente falando em termos de fé enquanto o Cristianismo naquele tempo não era. Contudo, ele sustentava que era possível sim estudar a Tanak junto com os Cristãos, mas não com os Muçulmanos, já que os Cristãos acreditavam que a Tanak (que eles chamavam de Velho Testamento) era a palavra de Deus enquanto os Muçulmanos acreditavam que os Judeus tinham falsificado o texto[1].

E assim nós fomos. Não era um grupo comum: a alegria da aula dos Jews College, junto com a elite dos estudantes de um seminário rabínico (yeshiva) de Montreaux onde o último Rabbi Yechiel Weinberg, autor de Seridei Esh, e um dos mais famosos experts do mundo em halakha (estudo das leis ligados ao comportamento prática da vida), tinha pensado. Por três dias esse grupo rezava e se inclinava com uma intensidade especial. Nós aprendemos Torah todos os dias. Em todo o tempo, acabamos por ter um incomum, diria mesmo até, transformador, encontro com os Bispos Africanos, terminando no maior estilo chassídico, no qual acabamos partilhando nossas danças e canções e histórias e eles nos contando e partilhando as deles. E no último dia, às três horas da manhã terminamos dançando todos juntos. Sabíamos que éramos diferentes entre nós, sabíamos quão profundamente era o que nos dividia em nossas respectivas crenças, mas tínhamos nos tornado amigos. Talvez isso fosse tudo o que nós deveríamos procurar. Amigos não têm que concordar com tudo para permanecer amigos. Amizades podem às vezes ajudar a curar o mundo.

Na manhã da nossa chegado, contudo, algo ocorreu que deixou uma profunda impressão em mim. O grupo patrocinador, uma organização Judaica mundial, era um grupo secular, e para manter seu quadro de referência deveria incluir no mínimo um membro não-Ortodoxo Judeu, e no caso foi uma mulher que estudava para o Rabinato. Nós, estudantes do seminário rabínico judaico, estávamos rezando o serviço da Manhã (Shararit) num dos salões do encontro quando a mulher do movimento da Reforma judaico entrou, usando talit e tefilin, e sentou-se no meio do grupo.

E isso era algo que os estudantes nunca tinham visto antes. O que eles fazem? Não existia para onde correr. Não havia como separar os grupos. Como eles deviam reagir diante de uma mulher que usava talit e tefilim e rezava no meio de um grupo de homens? Eles foram até o Rabbi Rabinovitch num estado de grande agitação e perguntaram o que eles deveriam fazer. Sem momento algum de hesitação ele retornou a eles dizendo uma palavra dos Sábios de Israel: uma pessoa deveria ser capaz de dirigir-se em direção a uma fornalha de fogo do que ser capaz de humilhar uma outra pessoa em público (Berakhot 43b; Kettubot 67b). E com isso ele ordenou que eles voltassem aos seus lugares, e as orações continuaram.

O ensinamento moral daquele momento nunca mais de deixou, O rabbi, que tinha sido diretor por 32 anos da yeshiva em Maale Adumin, era um dos maiores especialistas das leis judaicas da Halakha dos nossos dias. Ele sabia exatamente o quão sério era o que estava em jogo: homens e mulheres rezando juntos sem uma separação, sem um biombo entre eles e a complexa questão sobre se uma mulher poderia ou não usar um tallit e um tefilin. A questão podia ser tudo, menos simples.

Mas ele sabia também que a halakha é um caminho sistemático para transformar as grandes verdades éticas e espirituais numa tapeçaria de ações, na qual nunca devemos perder de vista o conjunto dessa tapeçaria, em vez de focarmos exclusivamente nos detalhes. Tivessem os estudantes insistido que a mulher devesse rezar em qualquer outro lugar eles a teriam colocado em situação vergonhosa, da mesma forma como Eli fez quando ele viu Ana rezando e pensou que ela estivesse embriagada (Cf. 1Sm 1,13-17). Nunca, jamais envergonhe alguém em público. Esse era o imperativo transcendente do momento. Esta é a marca da grande alma de uma pessoa. Eu considero isso como um dos grandes privilégios da vida ter sido estudante de um homem assim por mais de uma década.

A razão pela qual eu lhes conto essa história aqui é por causa de uma das mais impressionantes e poderososas lições da Parashat Vayeshev. Judah, o irmão que propôs vender José como escravo (Gn 37,26), tinha “decaído”, ele “desceu” em Canaã onde ele casou-se com uma mulher canaanita (38,1). A frase “ele desceu” foi considerada pelos sábios de Israel como cheia de significados[2]. Como José tinha sido também levado e descido para o Egito (Gn 39,1), assim também Judah tinha moralmente e espiritualmente sido levado abaixo. Aqui se encontrava um dos filhos de Jacó fazendo aquilo que os patriarcas insistiram para não fazer: casar com alguém da população local. É uma história de um declínio triste.

Judah casou seu primogênito, Her, com uma mulher local, Tamar[3]. E num versículo obscuro nos é dito que ele pecou e morreu. Judah então casou seu segundo filho, Onã, com ela segundo a forma Pré-Moisaica de casamento de levirato onde o irmão estão comprometido em casar-se com a cunhada se ela ficar viúva e sem descendência. Onã, relutante em ser pai de uma criança que seria considerada não como sua mas de seu irmão morto, pratica o coito interrompido o qual até hoje leva seu nome. Por isso, ele também morreu. Tendo perdido dois dos seus filhos, Judah é relutante em dar seu terceiro filho Sela em casamento a Tamar. O resultado disso é que ela permaneceu como sendo uma “viúva em vida”, comprometida em casar-se com seu cunhado que ainda vivia com Judah, e não poder casar-se com mais ninguém.

Após muitos anos, vendo que o seu sogro (também nessa época sendo viúvo) e que ele relutava em casá-la com Seka, ela decidiu em pôr em prática um plano audacioso. Ela tirou suas roupas de viúva, cobriu-se com um véu, e posicionou-se num local onde Judah seria capaz de vê- la no seu caminho no tosquio das ovelhas. Judah a viu, tomou-a como uma prostituta, e contratou seus serviços. Como penhor do pagamento que tinha prometido a ela, ela insistiu que ele deixasse seu sinete, seu cordão e seu cajado. Ele voltou no dia seguinte com o pagamento, mas não havia ali mulher alguma. Ele perguntou às pessoas sobre onde era o templo da prostituta ( o texto apontsa a palavra kedesha, “prostituta de culto”, e não zona, aprofundando desse modo a ofensa de Judah), mas ninguém havia visto por ali tal mulher. Intrigado, Judah retornou para casa.

Três meses mais tarde ele ouviu dizer que Tamar estava grávida. Ele chegou então à conclusão única que se podia ter, considerando que Tamar teve uma relação física com outro homem enquanto estava ainda ligada pela lei ao seu filho Sela. Ela tinha cometido adultério, e por isso a punição era a morte. Tamar foi trazida para fora para enfrentar sua sentença. Ela veio, segurando o cajado, o cordão que Judah no mesmo momento reconheceu como sendo seus. Ela disse, “eu estou grávida pela pessoa de quem pertencem esses objetos”. Judah se deu conta do que tinha acontecido e disse, “Ela é mais justa do que eu” (Gn 38,26).

Esse é o momento de virada da história. Judah é a primeira pessoa da Torah a explicitamente admitir que estava errado[4]. Nós ainda não percebemos isso, mas parece esse ser o momento no qual ele se dá conta da profundidade do caráter necessário para ele se tornar o primeiro real “baal teshuva”. Veremos isso adiante, anos depois, quando ele – o mesmo que havia proposto vender José como um escravo – se tornar o homem que é capaz de passar o resto da sua vida na escravidão no lugar do seu irmão Benjamin, caso ele fosse libertado (Gn 44,33). Eu sustentei essa posição na qual aprendemos que existe um princípio de que um penitente se torna mais alto espiritualmente falando do que um justo e perfeito indivíduo (Berakhot 34b). Judah como penitente se torna o ancestral dos reis de Israel enquanto José, o justo, é somente um vice-rei, mishneh lemelekh, o segundo após o rei.

Até agora vimos Judah. Mas a verdadeira heroína da história é Tamar. Ela assumiu um imenso risco ao se tornar grávida. De fato, ela é quase morta por causa disso. Ela o fez por uma única razão: para assegurar que o nome do seu falecido marido fosse perpetuado. Mas ela não teve um cuidado menor para evitar que Judah fosse envergonhado. Somente ele e ela sabiam o que tinha acontecido. Judah poderia ter reconhecido seu erro sem expor-se a respeito. É deste episódio que os sábios emanaram a regra articulada pelo Rabbi Rabinovitch naquela manhã na Suiça: é melhor arriscar-se a ser levado para um forno de fogo do que envergonhar alguém em público.

Não é por coincidência que Tamar, uma personagem heroica mulher, não judaica, se torne ancestral de Davi, o maior Rei de Israel. Existem semelhanças marcantes entre Tamar e outra mulher heroína no parentesco de Davi, a mulher Moabita que nós conhecemos como Rute.

Existe um costume judaico no dia de Shabat e nos dias de festa para cobrir o pão (hallot ou matzá) enquanto se segura a taça de vinho com a qual a benção é feita (Kiddush) para assim não envergonhar a halla que está sendo passada para trás, em favor do vinho. Existem judeus religiosos que fazem enormes esforços para não envergonhar um pedaço de pão sem vida, mas que não têm o menor escrúpulo em envergonhar seu companheiros de fé ao olhá-los como sendo menos religiosos do que eles. Isso é o que acontece quando lembramos os preceitos legais mas esquecemos o princípio moral implícito que está por trás deles. Nunca envergonhar ninguém em público. Foi isso que Tamar ensinou a Judah e o que um grande Rabbi dos nossos tempos ensinou aos que tiveram o privilégio de serem seus estudantes. (Rabbi Jonathan SACKS – Essays on Ethics, a Weekly Reading of the Jewish Bible – Jerusalem: Ou Press, 2016, p. 53-58)

VAYESHEV – Gn 37,1 – 40,23 Texto 2 – Os Justos não tem descanso

Rashi introduz assim a porção semanal da leitura da Torah para ser estudada com as palavras do Midrash:

Jacó desejava viver na tranquilidade, mas o problema com Jesus surgiu sobre ele. Quando os tzadikim (justos) desejam viver em paz, o Eterno, Bendito seja Ele, diz: “Não é suficiente para os justos o quanto está preparado para eles no mundo futuro, para que eles queiram procurar viver em paz neste mundo?” (Gênesis Rabba 84,3).

Jacó constantemente tentava se estabelecer em silêncio, para viver à vontade, e a cada vez, algum novo problema vinha sobre ele. Em todas essas histórias sobre Jacó, e na história também de muitos outros tzadikim somos frequentemente atingidos sobre a questão de o quanto os justos podem alcançar a paz. A questão não se trata sobre o bem estar físico. Durante a sua vida, Jacó é duramente atingido, sobretudo fisicamente. As provações de Jacó ocorrem sempre na esfera da tristeza em tristeza, e toda a história de Jacó é sobre esse esforço por viver em paz.

Quando Rabbi Yannai dizia que “nas nossas mãos nós não temos nem a tranquilidade dos perversos nem o sofrimento dos justos” (Avot 4,16). Ele percebe a realidade aparentemente contra nossa intuição de que o perverso sempre goza de tranquilidade enquanto os justos experimentam sofrimentos. O sofrimento do justo é parte do seu mundo, parte do padrão da sua existência. A garantia do justo é que eles “não irão descansar, nem neste mundo, nem no próximo” (Berakhot 64a ). Isso não é uma coincidência; é um princípio filosófico básico – Deus concede muitos favores e presentes para o justo, ambos neste mundo e no próximo, mas tranquilidade não está em nenhum deles”. Da mesma forma, o Talmud afirma, “Para o perverso, o sono é bom para eles, e bom para o mundo, mas para o justo, é mau para eles, e mau para o mundo” (Sanhedrin 72a) . Não há repouso para o justo. Quando um tzadik quer descansar, Deus não o deixa, como se dissesse que a falta de tranquilidade é uma parte essencial do ser um justo, um tzadik.

PAZ DE ESPÍRITO

Em nosso mundo, paz de espírito é uma das coisas mais desejadas após as comodidades de um supermercado. Não estamos falando somente em termos dos campos da psicologia e psicoterapia. Cada pessoa, de acordo com sua composição emocional, é incomodado por todo tipo de dúvidas e inseguranças. E isso ainda é mais verdadeiro hoje do que no passado, num mundo hoje muito mais dinâmico, dirigido e atormentado do que era antes. Por causa disso, cada pessoa procura por tranquilidade, de um modo ou de outro. Quando uma solução pessoal envolve terapia, pílulas ou introspecção pessoal, a procura por paz de espírito é frequentemente motivada pelo desejo de fuga de um mundo cheio de angústia para um mundo de calmaria. Todos querem viver em paz, e muitos estão até dispostos a pagar por isso.

Para muitas pessoas a escolha de um caminho de fé é percebido como escolher um caminho de tranquilidade e repouso – um caminho de paz tranquila e segura para si mesmo. A procura pela tranquilidade é frequentemente apontada pelas pessoas que desejam se conectar com o judaísmo, como uma vida religiosa é frequentemente percebida como uma vida de calmaria e sem esforço, em contraste com outros estilos de vida onde sempre se está correndo atrás de algo.

Na verdade, existe algo essencial nesta percepção. Isso pode ser observado no caso dos fumantes. Muitos não conseguem passar quinze minutos sem fumar um cigarro durante a semana, mas no Shabat, completamente abstinentes do cigarro não encontram problema algum. Como isso é possível? Existem muitas coisas neste mundo que são somente problemas quando estão no reino das possibilidades e do alcançável. Mas no Sábado, quando essas coisas estão na esfera do proibido – completamente fora dos limites – a paz de espírito pode ser alcançada.

Esta é a verdade com relação a muitas coisas no que diz respeito a Torah e os preceitos, pela virtude da natureza da Torah como um mundo altamente estruturado quanto ao que é proibido e ao que é permitido. As pessoas são frequentemente afligidas pelos desejos porque o objeto do seu desejo está ao seu alcance. Mas tão logo saibam que ele é impensável, que é inteiramente impossível, não existe mais razão para desejá-lo.

Um interessante exemplo disso é citado por Ibn Ezra, em seu comentário sobre o versículo “Não cobiçar” (Ex 20,14). Ele escreve que como não ocorre a um simples camponês cobiçar a princesa real, isso também deveria ser considerado a uma mulher casada. O camponês não se envolve com sonhos sobre a bela princesa; ele nem sequer pensa sobre ela. Talvez exista algum príncipe que pense sobre ela, mas o simples camponês não. Quando alguma coisa está inteiramente além do alcance da pessoa, ele simplesmente não pensa sobre isso, não considera seriamente sobre isso. Assim, não existe elemento algum de tentação nem uma necessidade por um esforço. Da mesma forma, “a casa do seu vizinho”, “a esposa do seu próximo”, e objetos semelhantes de desejo deveria estar fora do reino do que é permitido, na esfera do completamente proibido.

Para ter certeza, a verdadeira transição para a vida da Torah e dos preceitos requer uma firme decisão, mas em última análise, tal vida fornece, em certos aspectos, muita calma. Colocando de forma mais profunda: um mundo onde exista Deus é um mundo de paz de espírito e de segurança. Um mundo onde Deus não existe é um mundo repleto de ansiedade e insegurança; é como um labirinto sem fim.

UM MUNDO DE QUESTÕES

Quando falamos sobre tranquilidade num mundo da Torah e preceitos, nós devemos nos perguntar se esta tranquilidade, enquanto certamente contribuindo para um mais claro e ordenado mundo, verdadeiramente constrói um mundo melhor. Parece mesmo ser um mundo mais completo do que um mundo desprovido de Torah, ou parece que é assim mesmo?

A resposta para essa questão é, como já dissemos, “os justos não têm descanso”. Embora seja possível ver essa falta de descanso como secundária, vemos que, de acordo com os sábios de Israel, não existe igualmente descanso no mundo vindouro também. Aparentemente, falta de descanso é uma integral e fundamental parte do ser um justo (tzadik), talvez mesmo uma forma ideal de existência.

Quem quer que faça parte de um mundo de fé sabe que esse não é um mundo fácil para se viver. Angústia e luta interior estão junta na vida dos fiéis. Foi dito sobre o versículo “sete vezes o justo cai e se levanta! (Pr 24,16) e isso não é uma descrição sobre os fracassos do justo, mas diz mais sobre a sua progressão natural. Uma formulação mais nítida sobre isso seria dizer que a crise é parte do processo de revitalização dos homens e mulheres justos, de seu rejuvenescimento, e que as quedas são parte do processo de crescimento.

Semelhantemente o Talmud diz isso quando afirma que “alguém não entenderá plenamente as palavras da Torah enquanto ele não for atravessado por elas” (Gittin 43a). O simples entendimento disso é que, pela sua própria natureza, o estudo da Torah requer erguer-se e cair; as falhas fazem parte do processo.

As pessoas frequentemente são curiosas para saberem sobre um “método ideal” de estudar a Torah. A resposta pode ser encontrada em cada página do Talmud, desde as primeiras até às últimas. O corpus da literatura da Torah é cheio de questões e objeções, dificuldades e contradições. Claramente, o Talmud é muito mais feito de questões do que de respostas. O ideal da metodologia para o estudo da Torah é claro: Continuar a fazer as questões.

Na linguagem dos sábios de Israel, existem muitas diferentes palavras para as questões. Isso coloca sempre problemas para os tradutores, já que essa vasta “questão” como terminologia, apresenta vários tons de entendimento, que muitas vezes não são perceptíveis em outras línguas. Nenhuma outra língua para ser tão diferente no seu modo de fazer “questões” como no hebraico.

Os esquimós são famosos por ter um largo número de palavras para a neve – e isso não é de se admirar. Eles vivem na neve durante toda a sua vida, o que os faz desenvolver finas distinções entre diferentes tipos de neve – pesada, leve, fina, etc. Cada tipo de neve tem seu próprio termo. Em países onde a neve cai não frequentemente, existem muitos menos termos para significar a neve. Da mesma forma, o povo judeu vive num mundo que é abundante em questões. É portanto mais do que compreensível que tantos termos tenham sido desenvolvidos, cada qual expressando um tipo de questionamento ou diferentes tipos de questão.

Nesse sentido, Maimônides é excepcional na sua tentativa para organizar toda a Torah de modo que o quadro de perguntas e respostas se tornasse desnecessário. No final da sua introdução para a Mishneh Torah, Maimônides escreve que ele quer poupar o povo judeu do problema de fazer questões. Ele afirma que todo aquele que ler a Lei Escrita e seu livro pode pular tudo entre eles. Ele não está defendendo que a Torah Escrita ou que a Mishné Torah devesse substituir o lugar da Tanak, mas recomenda pular a Torah Oral. Por que uma pessoa deveria gastar sua vida fazendo questões, respondendo, e comparando? Por que continuar tudo isso se tudo pudesse ser colocado de modo mais claro e limpo num único livro?

A realidade é que sua tentativa não foi bem sucedida. Maimônides ele mesmo escreve (Iggerot HaRambam II, 444-445) que ele decidiu não citar suas fontes porque ele queria evitar confusões, mas depois, quando ele percebeu o que tinha acontecido, ele se arrependeu dessa decisão. O que os Judeus fizeram com Maimônides e seu grande trabalho provavelmente poderia tê-lo enfurecido. Ao contrário, Mishneh Torah, se tornou um refúgio de calma e tranquilidade, onde o cansado pudesse encontrar repouso, e se tornou uma das melhores fontes para novas questões. Esse trabalho, o que significava para nós tranquilidade, na prática se tornou uma fonte e o foco, para muito mais questões.

Por que nós avançamos com as questões? Antes de responder, é preciso insistir que não existe vergonha alguma em fazer perguntas. Parece que aquele que faz perguntas admite que lhe falta conhecimento ou entendimento, mas a verdade é justamente o contrário. Nesse sentido, é justamente o estudioso – aquele que tem maior conhecimento de tudo – quem faz a maior parte das questões. Um não estudioso não tem questões para fazer, não porque saiba sobre muita coisa, mas porque sabe sobre o mínimo. Ao nos dar a Torah, Deus não está nos enviando a tranquilidade. Tranquilidade não faz parte da recompensa. Antes, alguém que tenha alcançado um estado no qual ele não tenha mais questões, dificuldades, dúvidas, ou problemas, não é o ideal para o ser humano, pelo contrário, é alguém que deixou o mundo por completo.

Rabbi Simha Bunim de Peshisha nos é ensinado como sendo aquele que sugeriu que o ser humano sempre deveria imaginar que a sua cabeça está na pedra da execução, com a má inclinação sobre ele com um grande machado, pronto para decapita-lo. Um dos discípulos perguntou, “o que acontece se um homem não imagina isso?” Rabbi Simha Bunim respondeu que isso seria o sinal claro que a má inclinação já tinha cortado mesmo a sua cabeça. Se a pessoa não mais estiver sentindo nenhuma angústia e vive na tranquilidade e na paz, então ele já deve ter sido decapitado, e isto é o porque dele ter uma vida boa, cheia de paz e de tranquilidade.

Esta conclusão não é confortadora e com certeza também não é pacificadora. Uma vida de tranquilidade é certamente mais agradável do que uma vida de ansiedade e de stress, mas não é uma vida melhor. Escolhendo o caminho direito não significa escolher uma vida de facilidade, nem significa que escolheu uma vida desprovida de problemas. Antes, significa que escolhe uma vida que inevitavelmente contém um certo grau de angústia.

 

DE FORÇA EM FORÇA

“Jacó desejou viver em tranquilidade”. Jacó é um velho homem, com mais de cem anos de vida, e ele finalmente decide que ele está completo. Ele estudou a Torah por muitos anos, ele trabalhou por muitos anos, e ele se casou com quatro mulheres, Agora, raciocina Jacó, ele certamente merece o direito de se estabelecer e levar uma vida tranquila. A verdade é que quando o incidente com Esaú termina, parece que Jacó pense que o mundo mais ou menos tenha chegado a um estado de tranquilidade.

E justamente quando Jacó se prepara para desfrutar do seu suado descanso, Deus o interrompe dizendo, “não é suficiente para os tzadikim (justos) o tanto quanto eu já preparei para eles no próximo mundo, para que eles procurem viver em paz neste mundo?” As pessoas corretam não vivem à vontade, não como castigo pelos pecados, mas porque para eles, dormir tranquilamente seria “mau para eles e mau para o mundo”. A complicação, a angústia, a dor que existe no mundo – se o justo não tem todo tipo desses elementos, então, aparentemente, alguma coisa está errada em sua essencial característica.

A verdade é que, sem dúvida, em alguns aspectos, alguém que viva com o mundo dos valores presentes na Bíblia ganha a habilidade para resolver seus dilemas internos e tormentos, o objetivo final nunca é se permitir se estabelecer na tranquilidade. Se em alguma ocasião alguém tenha presumido ter libertado a si esmo dos Esaús e dos Labãos da sua vida, e que agora ele finalmente vai poder entrar na boa e espaçosa terra onde ele vai viver com tranquilidade e repousar em paz, ele está simplesmente errado.

Indo mais e mais profundamente na vida da fé na Bíblia não significa resolver todos os seus problemas e alcançar tranquilidade. Esse tipo de vazia tranquilidade somente aproxima uma pessoa mais e mais da morte, para o ponto onde a sua existência é inteiramente supérflua. Uma vez que as nossas questões tenham sido respondidas, elas não foram embora; elas simplesmente mudam, tornam-se novas questões completamente.

A vida de fé apresentada pela Bíblia não é uma perspectiva de alcançar tranquilidade, como acontece em outras religiões. Quando uma pessoa se aproxima de Deus e do mundo apresentado pela Bíblia, ele é recompensado não com o descanso mas somente com questões e mais questões. Se uma pessoa for especialmente bem sucedida na sua vida espiritual, a cada dia três das suas pequenas questões irão morrer, e três maiores questões irão nascer no seu lugar.

Mesmo no Mundo Vindouro, não existe descanso para os justos. “Eles caminham de força em força” (Sl 84,8), o qual é outro modo de transmitir essa noção. Quando uma pessoa justa se “forma” neste mundo, terminando seu processo de aprendizagem neste mundo, ele é promovido para outro mundo. O que ele ganha com este processo todo se ele está constantemente trabalhando? O que ele ganha através do seu trabalho são novas questões, algumas que ele nunca tinha previamente considerado. Embora essas sejam questões mais difíceis, elas também são questões relacionadas a um mundo mais elevado. Ele pode se envolver em assuntos mais elevados, mas ele nunca para de fazer as questões: O que é mais importante? O que é mais adequado? Qual é o mais apropriado caminho para seguir? Isso é o que verdadeiramente nos é pedido – não viver perseguindo a tranquilidade, mas viver num mundo de questões, cada uma delas levando a pessoa para mais alto e mais alto na sua jornada espiritual.


[1] Rambam, Teshuvot HaRambam (Responsa of the Rambam), Blau Edition (Jerusalem: Mekitizei Nirdamim, 1960), n° 149.

[2]De acordo com uma tradição do Midrash (Midrash Aggada, Pesikta Zutreta, Sekhel Tov), Juda foi enviado para essa descida, ou expulso pelos seus irmãos, por ter aconselhado a vender José, quando viram o sofrimento do seu pai. Veja também o comentário de Rashi sobre esse versículo.

[3] O Targum Yonathan identifica Tamar como sendo a filha do filho de Noé, Sem. Outros identificam Tamar como a filha de um contemporâneo de Abraão, Melquisedek. A verdade é, ensinada, que ela aparece numa narrativa sem descendência, uma maneira frequentemente usada pela Torah para ressaltar que a grandeza moral pode ser frequentemente encontrada entre as pessoas simples. Não tem nada a ver com ancestralidade. Veja Alshikh também.

[4] O texto está cheio de alusões verbais. Como dissemos, Judah “tinha descido” assim como José tinha sido “levado e descido” para o Egito. José foi elevado por grandeza política; Judah irá crescer eventualmente por causa da grandeza moral. A decepção de Tamar sobre Judah é semelhante à decepção de Judah sobre Jacó – ambas envolvem roupas: a túnica manchada de sangue de José, o véu de Tamar. Ambos alcançam seu clímax com as palavras haker na ̧ “por favor, examine isso”. Judah força Jacó a acreditar numa mentira. Tamar força Judah a reconhecer a verdade.