CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS

Estudo da Parasha da Semana - Cristãos estudando as fontes judaicas – Dt 1,1 – 3,22

SACKS, Rabbi Jonathan Sacks. Essays on Ethics, A weekly reading of the Jewish Bible. United States: Maggid Books, 2016, p. 277-280.

 

Parashat Devarim

No começo do livro do Deuteronômio, Moisés revê a história do Povo de Israel, as suas experiências no deserto, começando com a indicação dos líderes do povo, chefes de mil, de cem, cincoenta e de dez. Ele continua: 

“Naquele tempo dei aos juízes a seguinte ordem: ‘Ouvi vossos irmãos e julgai com justiça as questões que cada um tiver, seja entre dois Israelitas ou entre um Israelita e um estrangeiro que mora entre vocês. Não façais acepção de pessoas em vossos julgamentos. Ouvi tanto os pequenos como os grandes, sem temor de ninguém, porque a Deus pertence o juízo. Mas se houver um caso muito difícil para vós, devereis apresentá-lo a mim e eu o ouvirei”. (Dt 1,16-17).

Assim no início do livro no qual é resumida a história inteira de Israel e seu destino como um povo santo, ele já deu prioridade para a administração da justiça, o que ele irá notavelmente relembrar no capítulo 16,20, com as palavras: “Justiça, Justiça deves persegui-la, e assim viverás e possuirás a terra que o SENHOR teu Deus te dá”. As palavras para justiça, tzedek e mishpat, são recorrentes temas do livro. A justiça parece estar, através das gerações, inerente ao coração do povo de Israel e enraizada na sua fé.

Numa entrevista a Hazel Cosgrove, a primeira mulher a ser indicada como juíza na Escócia e membra ativa da comunidade judaica eu perguntei porque ela escolheu a lei como carreira. Ela respondeu-me numa evidente afirmação sobre si mesma: “Porque a Bíblia nos ensina: ‘Justiça, justiça irás perseguir’.

Um dos maiores advogados judeus no nosso tempo, Alan Dershowitz, recentemente publicou um livro sobre Abraão[1], que ele vê como o primeiro advogado Judeu, “o patriarca da profissão legal: um advogado de defesa para os condenados, que está disposto a arriscar tudo, até a ira de Deus, em defesa dos seus clientes”[2], o fundador não apenas do monoteísmo mas de uma longa linhagem de advogados judeus. Dershowitz oferece uma vívida descrição da Oração de Abraão em nome do povo de Sodoma (“Poderia o Juiz de toda a terra não fazer justiça?” Cf. Gn 18,25) como um drama judicial, com Abraão agindo como advogado dos cidadãos da cidade, e Deus, como se fosse o acusado. Esse foi o precursor de tantos outros grandes episódios na Torah e na Bíblia, nos quais os profetas argumentavam por causa da justiça com Deus e com o povo.

Um recurso da Bíblia é digno de nota neste contexto. Ao longo da Bíblia alguns dos mais intensos encontros entre os profetas e Deus são representados como dramas judiciais. Algumas vezes, como no caso de Moisés, Jeremias e Habacuc, o autor é a humanidade ou o povo de Israel. No caso de trata-se de um indivíduo que sofreu injustamente. O acusado é Deus mesmo. Em outras situações é o próprio Deus que traz um caso contra os filhos de Israel.
O termo que a Bíblia usa para esses diálogos especiais entre céu e terra é riv (briga), o qual significa uma ação judicial, e isso vem da idéia que está enraízada no coração do relacionamento entre Deus e a humanidade – e especificamente em relação ao povo de Israel – que é Aliança. A Aliança é um acordo vinculativo, uma promessa mútua, baseada na obediência à lei de Deus da parte dos seres humanos, e na promessa de Deus de lealdade e amor por parte dos Céus.

ssim, qualquer um dos lados pode, por assim dizer, levar o outro lado ao tribunal pelo não cumprimento dos seus compromissos.

Três características marcam o povo de Israel como uma fé distinta. Primeiro é a ideia radical que quando Deus revela a Si mesma aos seres humanos Ele o faz na forma de lei. No Mundo Antigo, Deus tem o poder. No Judaísmo, Deus é ordem, uma ordem que pressupõe uma lei. No mundo natural de causas e efeitos, a ordem assume a forma de lei científica. Mas no mundo humano, onde temos livre arbítrio, a ordem assume a forma de lei moral. Sabemos que a Torah significa, “direção, orientação, ensinamento”; outro significado é “lei”. O mais básico entendimento do princípio fundamental do Judaísmo “Torah min haShammayim”, a Torah que veio dos céus, é de que Deus, não os seres humanos, é a fonte da lei obrigatória.

Segundo, somos encarregados de sermos os intérpretes da lei. Que é nossa responsabilidade como herdeiros e guardiões da Torah Shebeal Peh, a Tradição Oral. A frase na qual Moisés descreve a voz que o povo ouviu na Revelação no Sinai, kol gadol velo yasaf, é entendida pelos comentadores em dois sentidos contraditórios aparentemente. Por um lado, significa “a voz que nunca mais foi ouvida novamente”; e por outro lado, significa “a voz que não cessou”, isto quer dizer, a voz que sempre foi ouvida novamente[3]. Não há, contudo, contradição alguma. A voz que nunca foi ouvida novamente é a que representa a Torah Escrita. A voz que sempre foi ouvida novamente é a Torah Oral.

A Torah Escrita veio “dos Céus”, mas sobre a Torah Oral o Talmud insiste: “Não veio dos Céus” (Baba Metzia 59b). Consequentemente o Povo de Israel continuou a conversação entre o Doador da lei e os intérpretes da lei. Isso é parte do que o Talmud afirma quando diz que “todo juiz que realiza um verdadeiro julgamento se torna um parceiro com o Eterno Deus, na obra da Criação” (Shabbat 10a).

Terceira característica fundamental é a educação, e fundamental para a educação é instrução na Palavra de Deus, na Torah, que é, a lei. Isso é o que Isaías quis passar quando disse: “Ouvi-me, vós que conheceis a justiça, povo cujo coração está na Minha lei; não tenham medo da reprovação dos homens, não tenham medo dos seus insultos” (Is 51,7). Foi o mesmo que Jeremias quis afirmar quando disse: “Esta é a Aliança que farei com a casa de Israel a partir daquele dia – oráculo do SENHOR , colocarei a Minha lei no seu coração, vou gravá-la em seu coração; serei o Deus deles, e eles, o Meu povo” (Jr 31,33). Um verdadeiro membro do povo de Israel deve ser “bem versado na lei”. O povo de Israel é uma nação de advogados por constituição.

Por quê? Porque o Povo de Israel não é somente entendermos sobre espiritualidade. Não é simplesmente um código para a salvação da alma. É um conjunto de instruções para a criação do que mais tarde o Rabi Aharon Lichtenstein chamou de “bem aventurança social”. É sobre trazer Deus para dentro do espaço compartilhado da nossa vida coletiva. Que precisa de lei: lei que representa justiça, honrando a todos os seres humanos independente da sua cor ou classe; lei que julga imparcialmente entre rico e pobre, poderoso e sem poder, e até no extremo caso entre humanidade e Deus; lei que relaciona Deus, seu doador, a nós, seus intérpretes; lei que sozinha permite a liberdade para coexistirmos com ordem, assim minha liberdade não é comprada à custa da liberdade de vocês. Pequena maravilha, então que a Bíblia tenha produzido e ainda produza tantos advogados.

Confira as seguintes citações bíblicas e identifique alguma concordância entre elas.
Explique a relação delas com a parashá de hoje.

Dt 1,17; Dt 10,17; 2Cr 19,7; Jó 32,21
Lc 12,56; Lc 20,21; Rm 2,11; Gl 2,6; Tg 2,1.9

Que outras questões surgiram a partir da leitura desses textos? Lembre-se, às vezes as perguntas que fazemos são mais importantes que as respostas que encontramos.


[1] Dershowitz, Alan. Abraham: The World’s First (But Certainly Not the Last) Jewish Lawyer (New York: Shocken, 2015).
[2] Ibid., p.11.
[3] Cf. Dt 5,19, e veja Rashi que nesse versículo oferece ambas interpretações.