Parasha Korach

PARASHÁ – KORACH – Nm 16,1 – 18,32
Centro Cristão de Estudos Judaicos – P. Fernando Gross- Cristãos estudando as fontes judaicas

COMO NÃO ARGUMENTAR – RABINO JONATHAN SACKS

Coré foi engolido pelo chão, mas seu espírito ainda está bem vivo e forte, e talvez nos mais improváveis lugares, nas universidades e tribunais “brasileiros” (tradução minha... – o autor usa as universidades britânicas e americanas)
Coré era a personificação do que os Sábios costumavam chamar de “argumento não pelo bem dos céus”. Eles contrapunham isso com as escolas de Hillel e de Shamai que “argumentavam pelo bem do céu”.[1]

A diferença entre eles, de acordo com Bartenura, é que o argumento pelo bem do céu é o argumento em favor e pelo bem da verdade.

Um argumento “não pelo bem dos céus” é um argumento pelo bem da vitória e do poder, e são duas coisas muito diferentes.

Coré e seus seguidores vinham de três grupos diferentes. Coré era da tribo de Levi. Datan e Abirâm vinham da tribo de Rubem. Havia outros 250 líderes das diferentes tribos. Cada um tinha uma queixa específica.[2]

Os 250 líderes sobre as funções de liderança que ocorreram após o pecado do Bezerro de Ouro e que foram dadas à tribo de Levi. Datan e Abirâm sentiram-se ofendidos pelo fato de sua tribo – descendentes do primogênito de Jacó – não ter recebido um “status” especial. A resposta de Moisés a Coré é clara: “Você agora está tentando obter o sacerdócio também? Quem é Aarão para que possamos reclamar contra ele?”. E isso deixa bem claro que Coré queria ser um Sacerdote (Cohen), provavelmente queria ser Cohen Gadol (Sumo Sacerdote), no lugar de Aarão.

Esses três grupos nada tinha em comum a não ser isso: queriam eles ser líderes. Cada um deles queria uma posição de maior “importância” ou de prestígio do que ocupavam realmente. Numa palavra, eles queriam poder.

Este era um argumento “não pelo bem dos céus”.

O texto nos dá uma imagem bem clara de como os rebeldes entendiam a liderança: a reivindicação deles contra Moisés e Aarão foi: “Por que vocês se colocam acima de toda a assembleia do povo de Israel?”.

Depois, Datan e Abirâm disseram a Moisés: “E agora você também deseja dominar sobre nós!”.

Existe uma regra geral: se você quiser entender sobre os ressentimentos, ouça o que as pessoas acusam sobre outras pessoas e então saberá o que no fundo elas mesmas querem. Por exemplo, por muitos séculos, vários impérios acusaram o povo de Israel de quererem dominar o mundo. Ao contrário de quase qualquer outra civilização de longa duração, o povo de Israel nunca criou ou procurou criar um império. Mas as pessoas que levantavam essa acusação contra os filhos de Israel pertenciam a impérios que começavam a desmoronar. Eles sim queriam dominar o mundo, mas sabiam que não podiam, e por isso atribuíram seu desejo aos filhos de Israel (estamos diante do processo psicológico conhecido como divisão e projeção, o fenômeno mais importante na compreensão do antissemitismo).[3]

Foi aí que criaram mitos antissemitas, sendo o caso clássico os protocolos dos Anciãos de Sião, inventados por escritores ou propagandistas na Rússia czarista durante os últimos estágios de seu declínio.

O que os rebeldes queriam era o que eles atribuíam a Moisés e Aarão, uma forma de liderança desconhecida na Torah e radicalmente incompatível com a virtude que Moisés vivia: a humildade.

Eles queriam colocar-se “acima da assembleia do Senhor” e “dominar” o povo. Eles queriam poder.

O que acontece quando você não busca a verdade, mas sim o poder? Você ataca não a mensagem, mas o mensageiro. Você tenta destruir a posição e a credibilidade daqueles a quem se opõe. Você tenta driblar seus oponentes. Foi isso que Coré e seus companheiros rebeldes tentaram fazer. A maneira explícita pela qual eles fizeram isso foi acusar Moisés de se colocar acima da congregação, de transformar a liderança em senhorio.

Eles fizeram ainda outras acusações, como podemos deduzir da resposta que Moisés lhes deu: “Não tirei proveito sequer de um burro e nem os prejudiquei”. Isso confirma que eles o acusaram de ter abusado do poder da sua posição para obter ganhos pessoais, apropriando-se indevidamente da propriedade das pessoas. Ele disse: “É assim que você saberá que o SENHOR me enviou para fazer todas essas coisas e que não foi uma ideia minha”. Isso confirma que eles o acusaram de lhes dar certas instruções ou mandamentos, atribuindo-os a Deus quando foram de fato sua própria ideia.

O exemplo claríssimo dessa transgressão é a acusação de Datan e Abirâm: “Já não é suficiente você ter nos tirado de uma terra onde jorrava leite e mel para agora nos matar no deserto?”

Essa afirmação já é precursora das mensagens do nosso tempo atual: notícias falsas, fatos alternativos, e pós-verdade. Eram mentiras óbvias, mas eles sabiam que, se as dissessem com muita frequência e na hora certa, alguém acreditaria nelas. Não houve a menor tentativa de expor as questões reais: existia uma estrutura de liderança que provocou um descontentamento forte entre os levitas, os rubenitas e outros chefes tribais: uma geração que tinha perdido a esperança de alcançar a Terra Prometida, e também tudo aquilo que estivesse incomodando o povo...

Existiam sim problemas verdadeiros, mas os rebeldes não estavam interessados na verdade. Eles queriam poder.
O objetivo deles, tanto quanto podemos julgar pelo texto, era o de fazer desacreditar Moisés, prejudicar sua credibilidade, levantar dúvidas entre as pessoas sobre se ele de fato estava mesmo recebendo suas instruções de Deus, e assim manchar seu caráter, comprovando que ele era incapaz de ser o líder do povo. E assim deveria pelo menos ser forçado a ceder aos pedidos dos rebeldes.

Quando você discute por causa do poder, a verdade não entra em jogo. O argumento que “não está a favor dos céus” ressurgiu em nossos dias na forma de “deletar” ou “derrubar” a moral, de que as mídias sociais se utilizam para descredenciar e transformar pessoas em “não-pessoas” quando se considera que cometeram algo errado (por exemplo assédio sexual) ou então simplesmente por irem contra a moda moral em vigor no momento. Particularmente perturbadora tem sido a prática crescente de negar ou então simplesmente retirar dos regimentos das universidades tudo que irá contrariar algumas opiniões consideradas ofensivas para determinado grupo (geralmente minoritário).

Assim aconteceu em março de 2020, pouco antes do fechamento das universidade por causa da crise do Coronavirus, quando ao menos três professores externos foram impedidos de falar ou “desconvidados” porque seus pontos de vista eram diferentes dos pontos de vista do corpo discente e que por isso “contrariavam” os princípios da Universidade. Em outras palavras, eles não gostavam do que eles tinham a dizer. Todos esses são exemplos vergonhosos e traem os princípios da Universidades. São exemplos contemporâneos de argumentos “não pelo bem dos céus”. Trata-se de abandonar a busca da verdade em favor da busca da vitória e do poder. Esses exemplos são sobre desacreditar e desvalorizar – “deletar” um indivíduo. Uma Universidade é, ou deveria ser, o lugar da discussão “pelo bem dos céus”. Onde iremos participar da busca e colaboração da verdade. Ouvimos pontos de vista opostos aos nossos. Aprendemos assim a defender nossas crenças. Nosso entendimento se aprofunda e, intelectualmente, crescemos.

Aprendemos o que significa cuidar da verdade. A busca pelo poder tem seu lugar, mas não mora onde o conhecimento tem seu lar. É por isso que os Sábios de Israel contrapunham Coré e seus companheiros rebeldes com as escolas de Hillel e Shammai:

Durante três anos houve uma disputa ente as escolas de Shamai e de Hillel. Shammai alegava: “A lei está de acordo com os nossos pontos de vista”. E Hillel afirmava: “A lei está de acordo com os nossos pontos de vista”. Então uma Voz do Céu (Bat Kol) anunciou: “Estas e aquelas são todas as Palavras do Deus Vivo, mas a lei está de acordo com a escola de Hillel”.

Já que “estas e aquelas são as Palavras do Deus Vivo”, por que afinal a escola de Hillel teve o direito de ter a lei determinada de acordo com as suas decisões? Por serem gentis e modestos, estudaram as suas próprias regras e as da escola de Shammai e foram tão humildes a ponto de mencionar os ensinamentos da escola de Shammai antes dos seus próprios.[4]

Este é um belo retrato do ideal rabínico: aprendemos ouvindo os pontos de vista de nossos oponentes, às vezes antes mesmo dos nossos. Acredito que o que está acontecendo nas universidades, transformando a busca da verdade em busca do poder, demonizando e excluindo aqueles com quem as pessoas discordam, é o fenômeno “Coré” do nosso tempo, e muito perigoso na verdade. Exista um antigo ditado latino de que, para garantir a justiça “audi alteram partem” – “ouça o outro lado”. É ouvindo o outro que percorremos o caminho da verdade.

Compare as citações bíblicas para ajudar na reflexão:
Provérbios 14,31; Eclesiastes 7,7 ; Marcos 7,22 e 1Pedro 2,1
Que outras perguntas o texto bíblico fez surgir?


[1] Mishná Avot 5,17.
[2] Essa é a opinião formada por Ibn Ezra e por Ramban.
[3] Cf. Vamik Volkan. The Need to have Enemies and Allies, 1988.
[4] Talmud Babilônia: Eruvin 13b