A Revelação ou a Lei – André Neher – Moïse et la vocation juive – Maitres Spirituels[1]

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O Sentido do acontecimento não se ilumina integralmente no Egito. O Êxodo é apenas um começo, mas a estrada mesmo tem uma orientação precisa: ela caminha em direção ao Sinai. É lá que numa cena memorável, única na história bíblica, num quadro de teofania, no qual não falta nenhum dos elementos essenciais à numinosidade[2] da experiência, Deus aí fala a todo um povo: Ex 19,16-19.

טז וַיְהִי֩  בַיּ֨וֹם הַשְּׁלִישִׁ֜י

בִּֽהְיֹ֣ת הַבֹּ֗קֶר  וַיְהִי֩ קֹלֹ֨ת וּבְרָקִ֜ים וְעָנָ֤ן כָּבֵד֙ עַל־הָהָ֔ר  וְקֹ֥ל שֹׁפָ֖ר חָזָ֣ק מְאֹ֑ד

וַיֶּחֱרַ֥ד כָּל־הָעָ֖ם אֲשֶׁ֥ר בַּֽמַּחֲנֶֽה׃

16   No terceiro dia, de manhã, e houve sons e relâmpagos, e uma nuvem espessa sobre a montanha, e a voz do shofar era muito forte, e tremeu todo o povo que estava no acampamento.

יז וַיּוֹצֵ֨א מֹשֶׁ֧ה אֶת־הָעָ֛ם

לִקְרַ֥את הָֽאֱלֹהִ֖ים מִן־הַֽמַּחֲנֶ֑ה וַיִּֽתְיַצְּב֖וּ  בְּתַחְתִּ֥ית הָהָֽר׃ 

17   E levou Moisés o povo ao encontro de Deus, desde o acampamento; e ficaram de pé embaixo da montanha.

יח וְהַ֤ר סִינַי֙ עָשַׁ֣ן כֻּלּ֔וֹ מִ֠פְּנֵי אֲשֶׁ֨ר יָרַ֥ד עָלָ֛יו יְהוָ֖ה בָּאֵ֑שׁ וַיַּ֤עַל עֲשָׁנוֹ֙  כְּעֶ֣שֶׁן הַכִּבְשָׁ֔ן  וַיֶּחֱרַ֥ד כָּל־הָהָ֖ר מְאֹֽד׃ 

18   E a montanha do Sinai fumegava, porque desceu sobre ela Adonai em fogo, e subiu a sua fumaça como a fumaça do forno, e estremeceu-se muito a montanha.

יט וַיְהִי֙  ק֣וֹל הַשּׁוֹפָ֔ר הוֹלֵ֖ךְ

וְחָזֵ֣ק  מְאֹ֑ד מֹשֶׁ֣ה יְדַבֵּ֔ר וְהָאֱלֹהִ֖יםיַ עֲנֶ֥נּוּ בְקֽוֹל׃ 

19   E foi o som do Shofar indo e fortalecendo-se muito, Moisés falava e Deus respondia pelo som (voz).

O Decálogo se anuncia, dez palavras majestosas, mas que não são mais do que os alicerces de um edifício espiritual muito mais vasto. Este se constrói pouco a pouco, num diálogo íntimo que continua, após a teofania do Sinai, entre Deus e Moisés, e que continuará, ainda até ao último dia onde, diante de seu povo, antes de morrer, Moisés poderá confiar, fielmente transcrito sobre o Livro e já comentado por ele numa longa parênese[3], o conjunto da Lei. Por isso, está correto que a Lei esteja no centro da Revelação do Sinai. Deus que desde o Êxodo, fala em perfeita igualdade ao ser humano, não lhe diz Tu,  mas Tu deves. O imperativo surgiu: ele está inscrito sobre as Tábuas de pedra do Decálogo que Moisés, após as ter trazido sobre seus braços, as depôs na Arca da Aliança. Moisés com a serena convicção de ter entregado com a Torah, a chave de toda vocação humana.

Mas paremos um pouco sobre este "imperativo". Primeiro defensor do imperativo da Lei, Moisés sublinha sua ideal e universal grandeza: "Guardai-os e ponde-os em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência diante dos povos para que, ao conhecerem todas essas leis, digam: 'Sábia e inteligente é na verdade, essa grande nação!... e qual a grande nação que tenha leis e decretos tão justos quanto toda esta Lei que hoje vos proponho?" (Dt 4,6-8). Hoje ? Há mais de três milênios de distância e sem alguma preocupação apologética, em virtude das próprias considerações que se impõem ao nosso conhecimento do mundo, cada um pode assinar em baixo o louvor que Moisés fez da sua própria Lei.

O imperativo dessa Lei se afirma voluntariamente como uma ruptura: "Não imiteis as práticas do Egito, onde morastes. Não imiteis as ações que se praticam em Canaã, aonde vos estou levando: não sigais os seus costumes. Praticareis meus decretos e guardareis minhas leis. Eu sou o SENHOR vosso Deus (Lv 18,3-4).

A estrada da Lei pretende abrir uma passagem toda nova, numa região virgem, sem contato com as ordens precedentemente estabelecidas. O Egito e Canaã são os vizinhos mais próximos de Israel no deserto, mas com esses povos, todas as civilizações do mundo oriental de então, são consideradas na mesma recusa. Num mundo já bem organizado, onde os homens já elaboraram suas crenças, suas formas de vida e de pensamento, o imperativo da Torah pretende introduzir uma dimensão nova: abrir uma brecha, fazer a experiência da passagem da degradação para a dignidade:


Dt 10,17-22 * Ex 22,20-26 * Dt 24,10-22

Esse método permanente de conexão, de afinidade do próximo com a autoridade de um acontecimento vivido, permite à Lei modificar radicalmente alguns estatutos da pessoa. O pobre, a viúva, o órfão eram vítimas de condições acidentais. Mas e o escravo? A Lei vai quebrar um dos preconceitos mais fortes da mentalidade coletiva (Ex 21,2.26-27; Dt 15,12-15; Dt 23,16-17; Lv 19,33-34; Ex 12,49; Lv 24,22). O escravo terá direito a sua vocação de liberdade: Ex 23,12; Dt 5,12-15.

O mesmo vai ocorrer com relação à moralidade sexual: Dt 23,18; Lv 18,21-26; Dt 18,9-13. O "espírito dos profetas" está igualmente presente nas exigências da Lei, da Justiça e do Amor: Sobre a Justiça: Dt 16,20; Ex 21,14; Dt 1,17; Ex 23,6.

Igualmente sobre o Amor: Na Lei a exigência do amor é absoluta. É preciso ultrapassar a psicose do ódio, quebrar os preconceitos sociais, pulverizar o círculo do egoísmo: Ex 23,4-5; Lv 19,34; Lv 19,18.

Mas a audácia da Lei tem o seu ponto culminante na exigência da Santidade. Nenhuma definição sociológica de santidade – nem o automatismo do sagrado, nem a virtude ideal, nem a ascese – pode ser aplicada ao famoso capítulo 19 do Levítico, onde os imperativos se formulam em justaposição surpreendentes. Os corpos, a alma, o espírito, a vontade, a fraqueza moral, o instinto natural, o tempo, o espaço, o indivíduo, a sociedade, a ética, o rito, neles coexistem numa promiscuidade desconcertante e cujo princípio permaneceria insondável se o primeiro versículo não nos oferecesse imediatamente a chave da liberdade: "Sejam santos, pois Eu sou Santo, Eu, vosso Deus" (Lv 11,44-45).  O capítulo 19 do Levítico (o capítulo da santidade humana pela imitação da santidade de Deus) esclarece esse tema da imitação. Assim ao ser humano a Lei foi-lhe dada não como um convite a obedecer somente, mas o ser humano é chamado a imitar. A Torah não se reduz a um imperativo, ela oferece um outro modo, a uma participação, cuja imitação, é o primeiro degrau. O conteúdo e o objetivo da Lei, é a vida. Na vida divina, o Um é realizado: Santidade de Deus. Mas o ser humano, criado à imagem de Deus, deveria ele permanecer mutilado, dividido, excluído pelas infinitas contradições de sua vida?

A lei aponta sobre a vida do homem, uma iluminação global, antes, como uma gigantesca onda, ela penetra a vida, entra em todas as suas aberturas, se infiltra em todos os seus canais, se distribui entre todos os seus rios. Desde o instinto biológico mais bruto até a sublimação espiritual mais refinada tudo é tomado pela Lei de Deus e impregnado por ela. Assim deve ser entendido esse capítulo da Santidade segundo a Lei de Moisés. Se a multiplicação da vida aí é sugerida com tanto realismo, é porque o esforço de Santidade deve precisamente tender a organizar e a unificar a vida. A Torah é mais do que Lei, é orientação, não a Lei, mas o caminho, a estrada sobre a qual é possível uma viagem em comum. A Torah fala ainda de um reino de sacerdotes (Ex 19,5-6).Uma palavra chave da Torah. O mundo está em Deus. Mas os homens viviam na ilusão de serem os proprietários dos seus domínios (Lv 25,23). A Torah ainda fala de circuncisão de corações (Dt 10,16; Lv 26,41). Fala ainda da circuncisão do tempo: sobre a economia dos ciclos sabáticos e anos jubilares (Lv 25).  Moisés sabia bem que esse projeto exigirá muita paciência e vontade. É preciso lutar contra as tentações, o orgulho... ser santo porque Deus é Santo.